Direito Humano ao Meio Ambiente

O papel aceita tudo.

É amplamente reconhecido que a América do Sul é um continente de extraordinária riqueza em diversidade natural. Vários de seus países figuram entre os líderes em listas de biodiversidade e suas legislações visam, na maioria dos casos, prevenir a degradação ambiental. Contudo, ao longo do continente, as políticas e normas implementadas não conseguiram conter a deterioração do meio ambiente, evidenciada, sobretudo pelo aumento de incêndios florestais, escassez de água, contaminação e outros problemas similares. Neste ponto os Estados têm capacidade limitada de reversão. Desta forma, o Direito Humano ao Meio Ambiente fica vulnerável. A Bolívia exemplifica particularmente essa situação e deve ser examinada, pois ilustra a realidade enfrentada por todo o continente.

Situação crítica do meio ambiente na Bolívia

Há meses, o relator das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, David Boyd, escreveu em sua conta no X que “a situação na Bolívia é profundamente preocupante”. Ele se referia a crítica situação enfrentada pelo país em relação ao meio ambiente, ao modelo econômico social-extrativista e à perseguição política.

Essas declarações tendem a ser verdadeiras se analisarmos o contexto econômico da Bolivia e como as leis ambientais são ajustadas no país. Para começar, dentro da Constituição Política do Estado o artigo 33 diz o seguinte. Os bolivianos tem “Direito a um Meio Ambiente saudável, protegido e equilibrado” que permita aos indivíduos e coletividades presentes e futuras, incluindo outros seres vivos, desenvolverem-se de maneira normal e permanente.

Dessa forma, a Constituição Política do Estado desse país reconhece os Direitos Ambientais como parte dos Direitos Humanos. Ela confere uma hierarquia raramente contemplada em outras Cartas Magnas. No entanto, na prática, não é possivel gozar de Direitos Ambientais e tampouco fazem parte dos Direitos Humanos.

A diferença entre Estado e Governo

Existem diferentes fontes para afirmar isso, mas além das conhecidas razões teleológicas sobre se é possível conceder direitos humanos a algo impróprio do humano, há uma fundamental: o Estado não os tutela. Refiro-me ao “Estado” neste contexto para diferenciá-lo de “Governo”, entendendo que o Estado é permanente e o Governo é transitório; seja como entidade autônoma ou como governo central.

De forma geral, os principais Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos não tutelam o direito humano ao meio ambiente saudável, protegido e equilibrado. De fato, o recente Tratado de Escazú que ainda não foi ratificado pelo Brasil, mas do qual a Bolívia faz parte. Ele contempla o direito a um meio ambiente saudável. No entanto, apesar de ser vinculante, não contém mecanismos coercitivos de cumprimento. Existem diferentes motivos para isso, especialmente relacionados à soberania de cada país e a não intromissão nas formas escolhidas de desenvolvimento.

Portanto, não existem Tribunais Internacionais que possam impor sanções ao Estado boliviano pelo descumprimento dos Direitos Ambientais. Inclusive o Tribunal Internacional pelos Direitos da Natureza que sancionou a Bolívia pela estrada ao TIPNIS (um parque nacional de extrema riqueza natural) teve impacto nulo. Levando-se em consideração que o Estado não cumpriu as exigências e não houveram consequências.

Limitações das prerrogativas dos tribunais e mecanismos constitucionais

É verdade que tribunais internacionais de direitos humanos já se pronunciaram sobre questões ambientais no passado, como nos casos da comunidade Sápara lutando contra o Estado do Equador em relação à exploração petrolífera em seu território, o caso Urteaga (uma comunidade da Amazônia) contra o Peru, e outros em que se busca impedir atividades de degradação ambiental. No entanto, todos esses casos estão mais relacionados a questões territoriais de povos indígenas e menos diretamente ao meio ambiente.

Adicionalmente, os indivíduos também estão em desvantagem quando recorrem à justiça exigindo reparação por danos causados pelo Estado. Os mecanismos constitucionais ou legais existentes são limitados para reclamar ao Estado por dano ambiental na Bolivia. Em outros casos, este pode alegar necessidade pública e estratégica para justificar projetos que violam o Direito ao Meio Ambiente saudável, protegido e equilibrado. Então, se você não pode exigir seu Direito ao Meio Ambiente frente a organismos nacionais ou internacionais, você realmente o possui?

Direito Humano ao Meio Ambiente.

Dissonância jurídica entre direitos e deveres do cidadão

Nesta dissonância jurídica, parece que os indivíduos têm uma obrigação com o meio ambiente, mas não um Direito. Pois o Estado boliviano pode sancionar o indivíduo por qualquer dano ambiental, inclusive imprescritivelmente, enquanto o indivíduo dificilmente pode sancionar o Estado. Nesta desigualdade de Direitos entre o Estado e o indivíduo é onde se rompe a tutela jurídica do direito humano ao meio ambiente.

Os exemplos são diversos para corroborar esta contradição inexplicável, embora um fato em particular chame a atenção e seja o caso dos biocombustíveis. Para ilustrar, no dia 24 de março, quando o Estado boliviano inaugurou a Planta de Biodiesel I em Santa Cruz que tem o objetivo de produzir biocombustível para substituir as altas importações e necessárias de combustíveis fósseis.

Mas de forma notável, ao fazer isso, o Estado, como proprietário do ativo da indústria de biocombustíveis, está realizando uma atividade ilegal contrária aos direitos do meio ambiente. ¿Por quê? Porque a Lei Marco da Mãe Terra e Desenvolvimento Integral para Viver Bem Nº 300, que regula os fundamentos e objetivos do desenvolvimento integral com a Mãe Terra (também conhecida como meio ambiente), em seu artigo 24, estabelece claramente que as bases e orientações do Viver Bem implicam: “proibir a produção de agrocombustível e a comercialização de produtos agrícolas para a produção dos mesmos, enquanto é prioridade do Estado Plurinacional da Bolívia zelar pela soberania com segurança alimentar”.

Leis e decretos para conter o desmatamento

Então, o que fazemos? Como justificamos que o Estado esteja realizando uma atividade ilegal e que foram promulgadas normas como a Lei nº 1098 ou o Decreto Supremo nº 5135 para aprovar os biocombustíveis? E não só isso, mas também isso levará a uma ampliação da fronteira agrícola devastando florestas e recursos naturais. Lembremos que a Bolívia é o terceiro país que mais desmata no mundo por 4 anos consecutivos, chegando a alcançar a segunda posição em alguns anos.

¿Será que isso se assemelha a um Direito ao Meio Ambiente saudável, protegido e equilibrado? Constitucionalmente, os recursos naturais como as florestas são de propriedade do Povo Boliviano. Mas, neste caso, o Estado está se envolvendo em atividades ilegais e às custas dos Direitos Humanos das pessoas e sem a autorização do proprietário do recurso.

Por outro lado, o Estado se vangloria do controle que exerce sobre a empresa privada e o indivíduo. Em muitos casos, as multas e sanções são assumidas pelas consequências que implicam a desobediência, mas reafirma o fato de que o humano, cidadão boliviano, tem uma obrigação com o meio ambiente e não um Direito, já que o Estado não reconhece esse Direito porque, na prática, em suas atividades, os ignora como se não existissem.

Dicotomia entre obrigações do Estado e do indivíduo

A dicotomia existente entre as obrigações do indivíduo e as obrigações do Estado com o meio ambiente é o que continuará aprofundando a atual crise ambiental. A solução para esses males está em transparência das atividades extrativistas realizadas pelo Estado, igualar as obrigações ambientais para os indivíduos e o Estado, fortalecer a implementação das leis ambientais existentes e estabelecer mecanismos de cumprimento mais rigorosos. A colaboração entre o governo, a sociedade civil e o setor privado será fundamental para alcançar um equilíbrio entre o desenvolvimento socioeconômico e a proteção do meio ambiente, garantindo assim um futuro próspero e saudável para as gerações futuras e talvez assim um Direito Humano ao Meio Ambiente saudável, protegido e equilibrado.

André Tejerina

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