As Pérolas do Conhecimento

A caixa d’água, seu refúgio

A vida de Leo estava repleta de transformações. Sua sede por conhecimento o levava a anotar tudo o que passava por sua mente: pensamentos, percepções, escritores, livros, filmes, referências, descobertas científicas e arte. Tudo era analisado e incorporado, resultando em mudanças nas suas atitudes. Tendo uma infância muito pobre, Leo desenvolveu habilidades e descobriu formas de ganhar dinheiro, seja negociando cascos de garrafa ou coletando jornais e revistas para vendê-los por quilo. O montante adquirido era guardado para comprar livros usados, que ele escondia no topo da caixa d’água interna de sua casa, envoltos em pedaços de tecido, dentro de caixas de sapato.

Esse lugar se tornou seu esconderijo, um ponto para observar a família e um refúgio para longos mergulhos no vasto mundo interior. Sem um quarto só para si, a caixa d’água se tornou seu lugar favorito, onde ele vivia intensamente experiências nos mundos imaginários, onde muitas vezes ele encontrava as pérolas do conhecimento.

A revelação por sonho do admirável mundo novo

Leo passava dos sonhos de olhos abertos para o sono com regularidade. Foi então que ele teve um sonho extraordinário: milhares de bolhas, como pérolas, flutuavam diante de uma vasta escuridão. Aproximando-se, ele percebeu que dentro de cada bolha havia vida em evolução. Sua curiosidade aumentou exponencialmente ao descobrir que cada uma continha cenas que se desdobravam ininterruptamente, como filmes contando a história do cosmos, da natureza e do mundo humano. Ao se aproximar mais, ele conseguia mergulhar dentro dessas bolhas e assistir ao desenrolar de enredos fantásticos: o desenvolvimento do universo, o aparecimento de galáxias, estrelas, planetas e da Terra. A evolução da natureza fluía como um rio de imagens que ele podia manipular ao seu bel-prazer. A habilidade de controlar o fluxo do tempo dentro dessas bolhas de realidade fez Leo sentir-se poderoso mas ciente da responsabilidade que essa capacidade implicava.

As Pérolas do Conhecimento.

Em destaque, uma dessas bolhas continha palavras que se escreviam continuamente em diferentes alfabetos. Era o romance da existência, por assim dizer. Leo acordava algumas vezes, mas rapidamente voltava ao sonho e à bolha das palavras, sempre diferentes, sempre revelando algo novo. Dentro dela, ele era cercado por textos que se mostravam aos seus olhos: histórias reais, romances, biografias, relatos maravilhosos. As letras flutuavam no espaço, formando palavras que se expandiam em frases claras e significativas. Leo ficou eufórico dentro do sonho, desejando compartilhar essa revelação com outros. Viu-se relatando-o a algumas pessoas. Mas elas não percebiam a importância e o significado de tamanho vislumbre. Ouviu uma delas dizer: “Você só se interessa por bobagens”.

Deixando marcas profundas na mente e no coração

Mas ali estava, aquele tapete móvel composto de pérolas que contavam histórias vivas de absolutamente tudo, cada brilho e nexo refletidos em todas as outras. Ele flutuava num imenso vazio, onde uma torrente de informações surgia continuamente diante de seus olhos. Explorando muitas dessas bolhas que continham vastos mundos, ele se encantava com seus conteúdos. Mas sempre voltava ao topo, onde as palavras floresciam em narrativas envolventes.

Acordou eufórico, com o coração acelerado. Rememorava o sonho e sentia o desejo de possuir todas aquelas informações. Mais tarde, tomou conhecimento da “Rede de Indra” e entendeu que, naquele sonho, tivera um vislumbre dessa alegoria.

Esse sonho deixou marcas profundas em sua mente e coração. Sabia que, apesar de presenciar superficialmente todos esses eventos, os dados estavam em sua mente, prontos para serem recuperados ocasionalmente com a técnica apropriada. Desenvolveu a ideia da Arca de Noé do conhecimento humano: um banco de dados contendo tudo que a humanidade já produziu, dos acontecimentos às descobertas, das artes aos pensamentos. Pesquisava nas bibliotecas, em velhos exemplares de revistas estrangeiras, anotando tudo sobre peças de teatro, concertos, óperas e lançamentos de livros, assim como estilos, artistas, escritores e eventos significativos para a história da humanidade.

A paixão pelo erudito e pelo violino

Nessa mesma época, nas bancas de revistas, encontrou a segunda edição de uma coleção de discos de música erudita. Sabendo que uma de suas irmãs tinha uma radiola antiga quebrada, ele a desmontou, remontou e a fez funcionar. A primeira música que ouviu foi o Concerto de Brandemburgo nº 3 de J. S. Bach. Aos primeiros acordes, uma forte emoção o tomou e ele chorou, impressionado pelo que a música lhe transmitia. Visualizava cada instrumento, seguindo as linhas melódicas como se as tocasse. Nasceu aí uma paixão pela música clássica. Passou a ler biografias de compositores, sobre suas obras e sobre o impacto que tiveram. Decidiu aprender a tocar violino, que passou a ser o seu instrumento favorito.

O sentimento de rejeição

Leo enfrentava situações extremamente graves na sua vida familiar. Naquela fase, começou a se defender com mais veemência das críticas e desconsideração de alguns dos seus irmãos. Apesar de ser o mais novo, sentia-se excluído do círculo de união da família. Sua mãe, grávida vinte vezes antes dele, estava cansada. Além do mais trabalhava incessantemente com seu pai para sustentar a imensa prole. Após dificuldades extremas, quando começaram a se equilibrar, veio sua gravidez. Ele nascera enorme num parto muito sofrido. Fora recebido com carinho pelos irmãos, mas suas necessidades constantes eram um peso a mais, parecendo ter vindo na hora errada.

No entanto, apesar do sentimento de rejeição, Leo soube o real significado de pertencer e de amar verdadeiramente a sua família. Essa história merece um relato especial, por tudo de precioso e sagrado que ela contém.

Aprendendo a deixar ir

A vida de Leo pode parecer, para alguns, totalmente fora da realidade, como se o acometesse um tipo de esquizofrenia. No entanto, ele era consciente de seus processos mentais e até mesmo os alimentava. Dizia para si mesmo que tinha um pé no chão e outro no ar. Conseguia, portanto, cumprir os seus compromissos nos estudos e no trabalho, e comportar-se dentro dos padrões. Mas sua parte imaginativa e sonhadora era o seu verdadeiro tesouro.

Ele tinha a noção exata que a confluência entre essas partes trazia ao seu mundo o sobrenatural. Como se a vida falasse com ele o tempo todo. Ademais, percebia os limites de onde poderia perder o controle. De vez em quando despedia-se de uma realidade imaginada com decisão e sem resquícios de saudade. Aliás, conseguiu purificar a palavra saudade do seu sentido meloso de retornar ao passado. Sintetizou-a em “sentir falta” de algo ou de alguém. O passado era um lugar que ele preferia não frequentar.

Com as experiências, as estratégias e um treinamento quase militar, Leo também conseguia cortar laços com resolução. Contudo, nem sempre se livrava com facilidade da carga de sofrimento, apesar de tentar contemplá-lo com uma certa frieza. Às vezes pensava: “lá está o verme, rastejando na lama”, referindo-se às armadilhas e prisões em que sua carência de amigos e de amor o colocava.

Assumindo a responsabilidade da própria realidade

Isso não o impediu de relacionar-se com pessoas que o desvalorizaram. Foi muitas vezes traído. Passou por várias fases, entre a vitimização e a revolta. Chegar a compreender e assumir a responsabilidade por tudo que lhe acontecia foi uma grande emancipação.

Configurou e assimilou a vida como uma grande peça de teatro e que dele se exigiriam sempre papéis congruentes com situações. Para isso analisava cada contexto e aprimorava as atitudes coerentes com as funções a desempenhar, tendo como regra básica sentir-se bem interiormente.

Estar em alerta foi para Leo, na maior parte de sua vida, o estado natural. Sempre preservando a sua visão do mundo para si mesmo. No entanto, alguns acontecimentos despertaram dentro dele a necessidade de se expor, muitas vezes com uma explosão de sentimentos guardados que saíam de forma violenta e assustadora. Então, lá vinha a consciência modulando a sintonia, serenando pensamentos, aquietando emoções. A grande obra era sentir-se à vontade na vida, sempre alerta, mas confiante de que sua comunicação com ela o faria compreender suas mensagens, alargando seu espaço na existência. Lembrando sempre das inter-relações entre as pérolas do conhecimento que encadeavam tudo numa grande tapeçaria.

Manoel Augusto Queiroz

Fonte: Imagens criadas pelo DALL-E 4 com prompts de Manoel Augusto Queiroz.

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