As Memórias que Construímos

Entre Chegadas e Despedidas

Domingo vou embora. A frase ressoa em minha mente enquanto observo minha filha preparando o café da manhã, os netos correndo pela casa, a rotina que se tornou minha por um mês inteiro aqui na Espanha. Como é curioso perceber que um mês pode conter uma vida inteira de memórias, as memórias que construímos entre chegadas e despedidas.

O Tempo das Memórias Afetivas

Existe um tempo cronológico – aquele que marca 40 dias no calendário – e existe o tempo das memórias afetivas. Este último não se mede em horas ou semanas, mas sim na intensidade dos momentos vividos, na qualidade da presença, na profundidade dos abraços dados e recebidos.

Neste mês, construí memórias que cabem em pequenos gestos: os netos correndo até a porta quando eu cheguei, eles me “corrigindo” e ensinando palavras em espanhol misturadas com português. Também os jantares que se esticavam porque ninguém queria que aquele momento acabasse, as idas e vindas na piscina (alto verão), risadas e broncas, entre tantas outras coisas. São essas pequenas coisas que se tornam grandes quando sabemos que têm prazo para terminar.

A Alquimia dos Espaços Compartilhados

Há algo mágico que acontece quando dividimos espaços por um tempo prolongado. A casa da minha filha, que no primeiro dia ainda me parecia um território a ser descoberto, hoje carrega o cheiro das minhas memórias. Sei onde fica cada coisa, conheço os barulhos da madrugada, aprendi os rituais da família. No ano passado, quando estive por aqui, ela morava em outra casa: se mudou no começo deste ano.

É impressionante como nos apropriamos afetivamente dos lugares. A cadeira da mesa onde sempre me sento, o canto do sofá que virou “meu lugar”, a janela da cozinha onde gosto de tomar o café olhando o movimento da rua. Esses espaços agora fazem parte de mim, e eu faço parte deles. E tudo isso nos remete as memórias que construímos.

As Memórias que Construímos entre chegadas e despedidas.

Convivência: A Arte de Estar Presente

Então, um mês de convivência ensina coisas que anos de conversas por vídeo não conseguem. Aprendi os novos trejeitos da minha filha, suas manias de mãe que eu não conhecia, a paciência (in)finita que ela tem com as crianças. Vi meus netos não apenas nos momentos especiais das chamadas de vídeo, que eles resistem bastante, mas também na convivência com amigos. E no tédio de dias de férias, quando já não sabem o que fazer, e querem as telas o tempo todo, na birra antes do banho, no carinho espontâneo na hora de dormir.

A convivência real é isso: estar presente não só nos momentos “relatados”, mas também nos intervalos, nos silêncios, nas pequenas chatices do dia a dia que, paradoxalmente, são o que mais vamos sentir saudade.

Aqui, neste pequeno povoado, a convivência é uma experiência inusitada: e já me sinto fazendo parte desta comunidade que se ajuda, apoia, convive e se conhece profundamente.

Essas experiências não são apenas lembranças – são parte de quem eu me tornei neste mês. Voltarei para casa uma avó diferente, uma mãe que conhece melhor sua filha adulta, uma pessoa que carrega na bagagem não apenas souvenirs, mas pedaços de vida vivida intensamente.

O Paradoxo das Despedidas

As despedidas carregam um paradoxo: são dolorosas justamente porque foram precedidas de momentos felizes. A dor da partida é proporcional à beleza do que foi vivido. Se não doesse, talvez significasse que não valeu a pena.

Domingo vou embora, mas levo comigo esse tempo que vale por muito mais que quarenta dias. Levo o riso dos netos ecoando em minha memória, levo o orgulho renovado pela mulher que minha filha se tornou. Levo a certeza de que o amor se multiplica quando é compartilhado presencialmente.

A Promessa das Próximas Chegadas

Portanto, toda despedida carrega em si a promessa de uma nova chegada. Já estou imaginando a próxima vez: como os netos terão crescido, que novas palavras terão aprendido, que novos cantinhos da casa me receberão.

Por isso, ao invés de chorar apenas pela despedida, escolho celebrar também a chegada que está por vir. Porque agora eu sei: um mês pode conter uma vida inteira de amor, e as memórias que construímos são tão fortes que conseguem sustentar o coração até o próximo encontro.

Então, volto para minha casa, meu marido e filha que ficaram no Brasil, para minha rotina, meu trabalho e para a academia. Uma academia mais do que necessária, para recuperar a forma e “queimar” o pão, as massas, as bebidas, queijos e doces que ultrapassaram os limites da minha gula e resistência!!!

As melhores memórias afetivas não são aquelas que guardamos em álbuns de fotos, mas aquelas que guardamos no álbum do coração – sempre à mão, sempre disponíveis para nos aquecer quando a saudade aperta.

Sarita Cesana

Psicóloga CRP 17-0979

@saritacesana_      @implementeconsultoria

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1 comentário em “As Memórias que Construímos”

  1. Muito bom texto! Passei por experiencia semelhante recentemente e concordo que as memorias que guardamos no coraçao em familia sao as melhores. Os aprendizados tambem sao importantes e nos marcam eternamente. A familia sempre nos ensina muito! 🙂

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