Memórias Entrelaçadas

Reflexos na Dança dos Espelhos

A fixação de Leo em seus processos mentais abria continuamente novos espaços de exploração. Durante muito tempo, ele se sentia vitorioso simplesmente por atravessar o dia sem grandes lutas internas em meio a memórias entrelaçadas. Sua relação consigo mesmo às vezes era como a de um superior hierárquico que espreme com um coturno a cara de um subalterno contra a lama. Esse tratamento conduzia a vários efeitos colaterais. Um deles era que Leo se machucava constantemente, ferindo pés, mãos, joelhos e outras partes do corpo contra quinas e objetos pontudos e cortantes.

O processo de eliminação do medo

O processo de autovalorização e a conquista do auto amor foi uma tarefa longa e laboriosa. Além dos diversos recursos que ele desenvolveu, os livros de psicologia expondo teorias e terapias foram grandes aliados. Com a ajuda das técnicas que eles apresentavam, e que ele praticava com disciplina militar, mapeou-se e conseguiu eliminar muitos de seus medos. Ele os desafiava sempre que podia.

Quando criança, na sua casa, as luzes eram desligadas às 21 horas, impreterivelmente, sendo terminantemente proibido acendê-las. Caminhar no escuro, para ir ao banheiro, por exemplo, significava atravessar verdadeiras multidões de seres, habitantes das trevas, que o tocavam e sussurravam nos seus ouvidos. Desafiou-os noite após noite, usando sua imaginação para distanciar-se, ou distanciá-los. O mundo interno de Leo era cheio de inimigos que o rebaixavam constantemente. Entretanto, sua imaginação criava cenários luminosos. Conclamava anjos e seres celestiais. Uma de suas orações mais constante era ver-se de joelhos diante de Deus, que ele imaginava como uma luz ofuscante, oferecendo seu coração para ser examinado. Ele repetia: “Eu sei que eu sou bom!”

Um diário de fantasias, imaginação e fatos sobrenaturais

Mais tarde, já adulto, relendo seus escritos, ele se admirava do quanto havia evoluído. Ao mesmo tempo, sentia-se envergonhado por ter sido assim, tão problemático. Muitas vezes, através de sua vida, esteve a ponto de queimá-los, tanto para eliminar esse passado quanto para transmutar aquelas energias extremamente desagradáveis. Mas nesses mesmos diários havia sonhos extraordinários, visões, percepções e imaginações de beleza, de amor e muitos relatos de fatos sobrenaturais.

Leo carregava essa certeza de que a vida falava com ele. Durante muito tempo, essa comunicação foi unidirecional, com mensagens acusatórias e desvalorizantes. Mas ousar abrir seu coração diante de Deus revelou-se um ato de coragem. Isso foi o começo de um diálogo extremamente rico e cheio de respostas encorajadoras. Aos poucos, sua visão de si mesmo passou de mendigo, um verme rastejante no chão da vida, para um tipo heroico que chegou até mesmo a desafiar o desconhecido, sozinho, tendo como única certeza a sua compreensão dos sinais que sua sensibilidade identificava.

Compartilhando tesouros com Deus

Sua imaginação fluía, e ele compartilhava com Deus tudo que reconhecia como valioso e sagrado, ofertando esses tesouros a Ele, no altar do seu coração.

Nesse meio tempo, o seu contexto familiar tornou-se extremamente pesado! Alguns traumas esmagaram sua alma com brutalidade, empurrando-o para as mais profundas grotas de um inferno particular. Os choques que algumas dessas vivências proporcionaram despedaçaram seu ser, despertando um monstro interno que continuamente o devorava, impedindo-o de expor o conteúdo do seu coração, de que agora até ele mesmo passou a duvidar.

A vida de Leo, a partir de então, foi uma luta contínua, com fases extremamente autodestrutivas, nas quais ele se feria intencionalmente. De olhos fechados, ele experimentava as dores que ele mesmo se impingia, forçando-se a aguentá-las como um carrasco perverso. Essas auto torturas se expandiam à sua imaginação, que criava cenários aterradores, onde se via cercado por seres medonhos que devoravam seu corpo com risadas tétricas. Leo chorava profundamente com pena de si mesmo. Esse ritual macabro tinha como segmento a visualização de seus familiares lhe pedindo perdão por acusações e eventos dos quais ele era inocente.

Sobrevivendo ao mergulho no submundo

Leo tinha certeza de que sempre fora protegido e guiado. Essa convicção advinha, principalmente, por ter sobrevivido a esses mergulhos no submundo, não sem muitas cicatrizes, mas de certa forma purificado. Pois, em nenhum momento, desejou o mal ou pensou em vingança. Exibir os fragmentos da vida de Leo traz o desafio de deixar histórias incompletas e exigir do leitor paciência, com a promessa de que todas as lacunas serão eventualmente preenchidas. Portanto, revelar seus traumas, mesmo de forma superficial, torna completo o quadro de sua evolução. Sem o conhecimento dessas passagens, o valor de suas façanhas pode parecer menos pujante.

Sua sensibilidade exagerada muitas vezes incitava sentimentos paradoxais. Percebia uma tendência à emotividade, ao sentimentalismo excessivo. Por isso, também vigiava constantemente o seu coração. Não para impedir que as emoções fluíssem, mas para reduzir sua intensidade, ou, pelo menos, sua expressão. Suas lágrimas fluíam com uma facilidade além do seu controle. Em determinadas situações, podiam constrangê-lo, principalmente quando se tornava adulto.

O bullying e a não aceitação

Sempre fora extremamente magro e angariou diversos apelidos pejorativos, que o magoavam, não pelas denominações, mas pela carga de menosprezo que eles transmitiam. Durante os anos de sua infância, sentia-se totalmente indefeso. Era comum fugir dos contatos, principalmente quando sentia que haveria confronto. Com o desenvolvimento de suas habilidades de observação e, principalmente, com a decodificação dos comportamentos em palavras e a assimilação de seus significados, criou estratégias para superar suas fraquezas. Mas muitas delas permaneceram até a idade adulta.

Leo não gostava de ser tocado. Aliás, temia o toque como um cachorro vira-lata tem medo de maus-tratos. Encolhia-se. Mais tarde, com algumas terapias, principalmente Biodança e Bioenergética, liberou grande parte do seu medo da rejeição. Concluiu que a necessidade de aprovação fazia parte fundamental do caráter humano. Identificou relações entre essa carência em si mesmo e a escala de desconforto que ela provocava.

O labirinto do subterrâneo da alma

A palavra “valor” lhe abriu um vasto espaço de entendimento. Compreendeu que a necessidade de aprovação era tanto mais forte quanto mais se valorizava determinada pessoa. Então, criou uma técnica de desvalorização, identificando conexões entre os atos das pessoas e seu próprio desconforto ou bem-estar. Com uma análise visual cheia de rabiscos e sinais, reduzia o valor daquela pessoa para si. Era uma tarefa muito difícil, pois sua necessidade de quem o compreendesse e aceitasse era imensa. Essa técnica, que incorporava uma dose de violência interna, o ajudou mais tarde, quando, em situações críticas, viu-se forçado a afastar de seu coração aqueles de quem mais esperava amor. Como resultado, seu estado de alerta procurava identificar sinais de perigo, dificultando grandemente o florescer de relações emocionais significativas.

Debruçar-se sobre a vida de Leo é como visualizar um imenso leque de eventos interconectados, cheios de nuances e segredos, como portas abertas para subterrâneos da alma. Cada uma chamando a atenção, apontando para mais dados e referências, explodindo em mensagens e significados. A existência era, para ele, como uma dança de espelhos, onde sua consciência estava simultaneamente em ambos os lados. Nessa relação entre reflexos, sentia-se confortável, emancipado e maduro.

Muitas vezes, meditava no escuro, e via a si mesmo como um farol no infinito, emitindo sua assinatura, num ato de entrega, como um bloco de informações, compacto e completo, cônscio de que sua história era um elo na vasta trama da totalidade e de memórias entrelaçadas.

Manoel Augusto Queiroz

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4 comentários em “Memórias Entrelaçadas”

  1. Extraordinário ,essas reflexões e vivências são de extrema importância ser inscritas para nos descobrir como podermos ser grandes de dentro para fora!
    Resumindo emancipado é maduro,a transmitir a luz ,mesmo diante de momentos que achamos obscuros.
    Gratidão ao autor e ao blog!

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