Nascida em 2020 no Distrito Federal, a revistinha Eu Me Protejo, de autoria da jornalista Patrícia Almeida e da psicóloga Neusa Maria da Costa Ribeiro, é uma cartilha que ensina as crianças a se protegerem da violência sexual. Ainda em 2020, recebeu o Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Em 2021, o projeto voluntário ganhou o clipe Meu corpinho é meu, mais um recurso para ser transmitido nas escolas.
No site Eu Me Protejo, há vídeos, jogos, poemas, músicas, teatro de fantoches etc que reforçam os ensinamentos da cartilha. A ideia do projeto é que o conteúdo seja disseminado ao maior número de crianças possível. Afinal, segundo dados, 68% dos registros no sistema de saúde, referem-se a estupro de menores. O site ainda revela que não temos um número maior de denúncias porque, dentre outros motivos:
“O abuso vem de quem cuida, ou de uma pessoa próxima”;
“A vítima não sabe reconhecer os tipos de toque, ou o que é o ato sexual por falta de acesso à escola e à informação adaptada.”
“Desconforto da família em ‘conversar sobre o assunto’ – tabu.”
“Medo da exposição e do processo legal.”
Em dezembro de 2022, Eu me Protejo ganhou o prêmio Pátria Voluntária. Para saber mais sobre o projeto, acesse Eu Me Protejo.
O corpo da criança
Na Psicanálise, tratamos o corpo da criança como algo admirável ou, dizendo de uma forma mais absurda, sedutora. Mas é fato que a sua pele é mais macia, possui odor mais agradável e, por mais que não haja grandes curvaturas, tudo é mais bonito, mais rosado, mais rechonchudo, mais firme, menos peludo, mais higiênico, inclusive. Não é à toa que, quando vemos um bebê, a reação comum é fazermos caras de bobos, não conseguirmos parar de olhar, querermos apertar ou morder, certo?
Assim, começa o jogo entre os corpos das crianças e dos adultos, sem que sequer percebamos. As trocas de carícias, as repreensões, os incentivos à vergonha bem como à sexualização. E o sujeito enquanto criança não tem filtros, não tem discernimento, não tem capacidade crítica. Se o seu responsável, sem jeito ou com repugnância, não a ensina, o jovem estará sempre a mercê de uma outra figura adulta, que pode simbolicamente substituir o seu pai ou a sua mãe, “ensinando-a” de uma outra forma.
O abusador
Como falei no texto Poder e submissão: até que ponto o estado é efetivo contra a violência doméstica?, esse indivíduo vai sempre procurar alguém mais vulnerável que ele para fazer de vítima. O abusador é provavelmente alguém que já foi abusado, reprimido ferozmente ou que está fixado num modelo narcísico e, principalmente, onde não houve recalque. Em outras palavras, estamos falando de um sujeito que desenvolveu um outro tipo de estrutura psíquica para que pudesse sobreviver.
Para o abusador, a lei não intimida. O seu desejo está acima de todas as coisas e todos os outros são meros objetos. Ele impõe no outro o que o outro não quer. E se o outro não sabe o que quer, fica ainda mais fácil de impor o seu desejo, não? É aí que entra a importância do posicionamento das crianças.
‘Quem não sabe onde quer ir, qualquer caminho serve’
A frase é de Lewis Carroll e serve para qualquer um, seja criança ou adulto. Mas, afinal, uma criança pode definir o que quer?
Por mais que a criança seja uma página em branco, onde nós adultos que a cercam tendemos a carimbar com as nossas crenças, ela tem o direito de escolha, de livre expressão, de dizer se se sente mais ou menos confortável com isso ou aquilo. A criança sempre vai tender a se sentir como os seus responsáveis se sentem ou se expressar também como eles se expressam. Afinal, os adultos funcionam como um espelho. Por isso, a necessidade do cuidado quando ensinamos e da comunicação clara, reduzida de ambiguidades.
Ela precisa entender o que é dela e o que é do outro, o que é confortável e o que não é, o que é necessidade dela e o que é necessidade do outro, que dizer sim e não são ambas opções, que nem todos os adultos vão protege-la e que ela deve procurar ajuda de alguém com quem se sente confortável toda vez que sentir desconforto.