O Paradoxo Religioso da Juventude Global

Entre a Secularização e a Radicalização

A contemporaneidade apresenta o paradoxo religioso da juventude global explicitando um comportamento desconcertante. Enquanto as estatísticas apontam crescimento consistente do ateísmo, agnosticismo e da categoria “sem religião” especialmente entre jovens em democracias ocidentais, observa-se simultaneamente um movimento aparentemente contraditório. Uma radicalização religiosa entre segmentos juvenis, com destaque particular, embora não exclusivo, para o fundamentalismo islâmico. Essa contradição superficial esconde, na verdade, uma complexa reconfiguração do campo religioso mundial. Reconfiguração essa que desafia análises simplistas e exige compreensão nuançada dos múltiplos fatores sociológicos, psicológicos e geopolíticos em operação.

No Brasil, dados do Censo 2022 revelam que 26,9% da população se declara evangélica, representando 47,4 milhões de pessoas. Entre jovens de 10 a 14 anos, impressionantes 31,6% já se identificam com a fé evangélica, demonstrando forte presença religiosa nas gerações mais novas. Contudo, uma pesquisa do Datafolha de 2022 constatou que os não religiosos representam 25% da juventude brasileira entre 16 e 24 anos. Nas duas maiores cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, os não religiosos atingem 30% e 34% dessa faixa etária, respectivamente.

Os Números da Secularização Global

Em relatório divulgado em 2015, o Pew Research Center destacou que em 2010 havia cerca de 1,1 bilhão de ateus, agnósticos e pessoas sem religião específica no mundo. Essa massa humana representa aproximadamente um sexto da população global, concentrando-se predominantemente em sociedades economicamente desenvolvidas. Setenta e cinco por cento da população global sem filiação religiosa vive na região da Ásia-Pacífico, seguida pela Europa com 12% e América do Norte com 6% Conversacion sobre Historia.

Na Coreia do Sul, segundo censo nacional de 2015, a maioria (56,1%) não é filiada a nenhuma religião específica, representando aumento de 9% desde 2005. A porcentagem é ainda maior entre jovens adultos, chegando a 64,9% entre pessoas na faixa dos 20 anos. Tendências semelhantes manifestam-se em democracias desenvolvidas ao redor do mundo.

Estudo do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicos (Ibase) aponta que no Brasil 14% dos jovens declararam não ter religião, contra 7% dos adultos. A idade média das pessoas sem religião é aproximadamente 26 anos, correspondendo ao período universitário onde confrontos com a fé e relativização de valores se acentuam Lecturalia.

A Radicalização Islâmica Entre Jovens Europeus

Paradoxalmente, enquanto a secularização avança nas democracias ocidentais, observa-se movimento preocupante de radicalização religiosa. Em particular o islamismo, em segmentos específicos da população jovem. Autoridades belgas estimam que mais de 450 cidadãos belgas partiram para a Síria e outros centros do Estado Islâmico no mundo árabe. A Europa enfrenta presença bem enraizada de bolsões de radicalismo islâmico espalhados por toda parte, problema entrelaçado com imigração, integração e militância significativa da segunda geração.

A Irmandade Muçulmana e salafistas concentram sua ação nos jovens através de suas 300 mesquitas na França, mas especialmente por meio de redes sociais, clubes esportivos, escolas e prisões. Seu objetivo é fazer com que a geração jovem de muçulmanos cresça em separatismo com relação à República. O Estado Islâmico está usando inteligência artificial para tornar o discurso extremista mais romantizado. Em especial para adolescentes e jovens, buscando alcançar público crescente desvinculado da ideologia extremista islâmica na Europa, Ásia Central e Norte da África.

Contudo, especialistas explicam que entre os motivos da França ser alvo constante está o fato de sua população marginalizar a comunidade muçulmana, tratando-a muitas vezes como cidadãos de segunda classe, o que abre porta para grupos radicalizarem a juventude. A frustração resultante de discriminação no emprego, especialmente contra mulheres muçulmanas que usam véu, propicia a radicalização e o recrutamento por grupos fundamentalistas islâmicos.

O Paradoxo Religioso da Juventude Global.

Por que Jovens Optam pela Radicalização?

A aparente contradição entre secularização crescente e radicalização religiosa resolve-se quando compreendemos que ambos os fenômenos respondem, por caminhos diversos, às mesmas crises estruturais da modernidade tardia. Cinco fatores principais explicam por que jovens em sociedades liberais optam pela radicalização religiosa:

1. Crise de Identidade e Marginalização Social

Setores da população que abraçam mais facilmente o discurso fundamentalista são geralmente formados por pessoas mais pobres, pois essa camada social sofre mais intensamente as ameaças e consequências danosas dos processos de mudança social. Então, jovens de segunda e terceira geração de imigrantes muçulmanos na Europa frequentemente experimentam crise identitária aguda: não são plenamente aceitos como europeus pelos nativos, mas tampouco se identificam completamente com as culturas de origem de seus pais. Entretanto, esses jovens radicais são crentes sinceros de que realmente irão para o céu, e seu quadro de referência é profundamente islâmico. Todavia, muitos nem sabem ler árabe e conheceram membros de suas redes pela internet.

O fundamentalismo religioso oferece narrativa identitária clara, poderosa e totalizante. Fornece senso de pertencimento a comunidade global de crentes unidos por propósito transcendente. Transforma jovens marginalizados social e economicamente em soldados de missão sagrada. A humilhação de ser tratado como cidadão de segunda classe é ressignificada como teste divino, prova de fé que será recompensada no além.

2. Reação à Anomia e Vazio Existencial

Muitos pais da geração Z identificaram-se com ateísmo, agnosticismo ou mantiveram religiosidade sem filiação religiosa. Por isso, o interesse crescente dos filhos pela religião é forma de contestação e rebeldia invertidas. O liberalismo ocidental, com sua ênfase na liberdade individual radical, tolerância moral e pluralismo relativista, gera em muitos jovens sensação de anomia, ausência de propósito claro e vazio existencial.

A modernidade líquida dissolveu certezas tradicionais sem oferecer substitutos satisfatórios. Sociedades seculares fornecem liberdade sem direção, escolhas sem orientação, possibilidades sem significado. Então, para personalidades que anseiam por estrutura, clareza moral e propósito transcendente, o fundamentalismo religioso com seus códigos detalhados de conduta, certezas absolutas e narrativas cósmicas oferece antídoto sedutor à vertigem da liberdade pós-moderna.

3. Fracasso da Integração e Discriminação Estrutural

A Organização Anistia Internacional criticou o governo belga pela falta de esforços para integração. Segundo estudo de 2012, facilitou-se às empresas a recusa de candidatos a emprego por motivos religiosos, sendo mulheres muçulmanas que usavam véu as mais afetadas. Portanto, quando sociedades ocidentais pregam valores de igualdade e oportunidade, mas sistematicamente discriminam minorias muçulmanas no emprego, educação e vida pública, criam condições perfeitas para radicalização.

Jovens muçulmanos nascidos e criados na Europa, que frequentaram escolas europeias e falam idiomas europeus como língua materna, encontram-se sistematicamente excluídos de oportunidades econômicas e aceitação social plena. Essa contradição entre promessas meritocráticas e realidade discriminatória gera raiva justificada que grupos extremistas exploram habilmente, canalizando ressentimento legítimo para projetos violentos.

4. Geopolítica e Narrativas de Vitimização

O fundamentalismo islâmico foi patrocinado por Washington como principal antídoto ao comunismo e ao nacionalismo de esquerda no mundo muçulmano durante a Guerra Fria. A radicalização islâmica nasceu da ocupação do Oriente Médio pelos europeus e norte-americanos, criando descontentamento entre povos árabes que passaram a desejar o fim da influência ocidental.

As intervenções militares ocidentais no Oriente Médio, o apoio incondicional a Israel, as guerras no Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia fornecem combustível inesgotável para narrativas de vitimização muçulmana. Jovens europeus de origem muçulmana assistem bombardeios de populações civis em Gaza, destruição de cidades na Síria, sofrimento de refugiados e interpretam esses eventos através de lente de guerra civilizacional contra o Islã. Grupos radicais enquadram sua violência não como agressão mas como defesa legítima de comunidade atacada.

5. Tecnologia Digital e Radicalização Online

O Estado Islâmico utiliza estética de jogos de tiro em primeira pessoa em plataformas criptografadas, enquadrando radicalismo islâmico como expressão de heroísmo. Essa radicalização gamificada busca alcançar jovens desvinculados da ideologia extremista islâmica. Desta forma, o neoateísmo tem se propagado com maior velocidade desde o fim do século passado em virtude das facilidades propiciadas pela internet. Ela tornou conceitos e pensamentos ateístas mais acessíveis, deixando círculos filosóficos e científicos para alcançar todos os espaços sociais.

A internet democratizou acesso não apenas a ideias seculares mas também a propaganda extremista. Algoritmos de redes sociais, projetados para maximizar engajamento, sistematicamente conduzem usuários que demonstram interesse inicial em temas islâmicos para conteúdos progressivamente mais radicais. Recrutadores invisíveis das redes sociais encontram ouvidos atentos entre jovens à margem e mal integrados. Isso inclui criminosos arrependidos que gostariam de se purificar com jihad e convertidos geralmente isolados e em ruptura com ambiente ou família.

O Paradoxo Brasileiro: Evangelismo e Secularização Simultâneos

O Brasil apresenta microcosmo fascinante desse paradoxo global. Se a tendência atual se mantiver, analistas preveem que evangélicos podem ultrapassar católicos em duas décadas, especialmente mantendo avanço entre os mais jovens. Contudo, os professores Ricardo Mariano e Silvia Fernandes identificam tendência crescente de desfiliação religiosa entre jovens por causa da liberalização social e crenças individualistas. Estas crenças são vistas como conflitantes com dogmas morais rígidos e crescente politização das religiões pelas igrejas, especialmente evangélicas.

O crescimento neopentecostal no Brasil relaciona-se com formação mais ampla de discursos conservadores. Entre 1980 e 2010, segundo Censo do IBGE, o número de evangélicos subiu de 6,6% para 22% da população. Esse crescimento não contradiz necessariamente a secularização, pois jovens de hoje encontram questionada a histórica equação brasileiro=católico, generalizando-se a possibilidade de declarar-se sem religião sem abrir mão da fé.

Interpretando o Paradoxo: Polarização ao Invés de Uniformização

A chave para compreender o aparente paradoxo reside em reconhecer que não estamos testemunhando movimento uniforme em uma única direção, mas profunda polarização do campo religioso. A sociedade contemporânea, com imbricamento entre dimensões presenciais e virtuais, contribui para que parcela da juventude não se submeta ao controle direto de autoridade religiosa. Observa-se maior possibilidade de posicionamentos democráticos e experimentação religiosa, mas também, por reação ou convicção, aumento de fundamentalismos e sectarismos.

O cenário político global de polarização e crescimento de movimentos conservadores e extrema-direita resulta em busca por religiosidades mediadas por instituições, pois cristianismo tem se tornado marca de identidade política conservadora. A modernidade não produziu, como se antecipava, mundo uniformemente secular. Produziu, ao invés, mundo dramaticamente polarizado entre secularismo radical de um lado e fundamentalismo religioso do outro, com diminuição progressiva do meio-termo moderado.

Jovens contemporâneos, confrontados com incertezas sem precedentes, instabilidade econômica, colapso ecológico iminente, fragmentação social e vazio existencial, bifurcam-se entre dois polos: alguns abraçam ateísmo racional e autonomia individual radical; outros buscam refúgio em certezas religiosas absolutas e comunidades de fé rigidamente estruturadas. Ambos os movimentos representam tentativas, através de estratégias opostas, de lidar com ansiedades da modernidade tardia.

Navegando o Futuro do Campo Religioso

O duplo movimento de secularização e radicalização religiosa entre jovens globalmente define o campo de batalha ideológico do século XXI. Um aumento progressivo multinacional do ateísmo e declínio do teísmo parece estar ocorrendo, podendo ser universal nos países ocidentais, continuando tendência de longo prazo que provavelmente começou em 1800 e vem acelerando desde a Segunda Guerra Mundial. Simultaneamente, fundamentalismo religioso, particularmente islâmico mas não exclusivamente, recruta jovens descontentes, marginalizados e em busca de significado.

Sociedades democráticas enfrentam desafio monumental de integrar genuinamente minorias, oferecer oportunidades econômicas equitativas, combater discriminação estrutural e fornecer alternativas seculares robustas ao vazio existencial que alimenta tanto niilismo quanto fundamentalismo. O fracasso nesse desafio não resultará em vitória do secularismo sobre religião ou vice-versa, mas em intensificação da polarização que ameaça os próprios fundamentos da coexistência pacífica em sociedades plurais. O futuro da convivência humana depende crucialmente de nossa capacidade coletiva de construir pontes através desse abismo crescente entre os sem-religião e os fundamentalistas, oferecendo caminhos intermediários que honrem tanto autonomia individual quanto necessidade humana de significado transcendente.

Wagner Braga

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