Aventuras e metamorfoses

Dando asas à imaginação

O interesse de Leo pelas informações contidas nos livros, abriu em sua mente um vasto espaço de compreensão sobre o mundo. Consciente de suas dificuldades em se comportar e, mais ainda, em se relacionar, ele criou diversos estratagemas para amenizar o desconforto e a sensação de ser um intruso na vida.

Durante as férias, ele invariavelmente viajava para a casa de sua irmã no interior do estado. Lá, ele se sentia livre. Então, curtia suas aventuras e metamorfoses: fazia caminhadas solitárias à beira do rio, pedalava pelas fazendas das cercanias e jogava bola com outros da sua idade. Também recolhia carcaças de insetos, folhas esquisitas, galhos retorcidos e pedras. Sonhava acordado com mundos e acontecimentos imaginários. E lia, revistas e livros do seu cunhado.

Descobrindo o mundo da insanidade mental

Em uma dessas publicações, encontrou um artigo sobre esquizofrenia. Foi a primeira vez que tomou conhecimento dessa palavra e de seu significado. O assunto abordava o filho de um famoso escritor americano que manifestou essa disfunção desde a adolescência. Na reportagem ele, adulto, expunha os métodos que desenvolveu para se comportar e ter uma vida normal e produtiva.

A descrição das particularidades de sua vida e dificuldades de adaptação à sociedade fez com que Leo se visse refletido em cada detalhe. Contudo, para ele, aquilo representou um achado de inestimável valor. Então, anotou tudo que poderia servir como referência para pesquisas posteriores. Também sintetizou os métodos descritos e os transformou em regras.

A principal delas era observar as pessoas sempre que possível, gravando tudo que fizesse parte do contexto onde atuavam. Depois, imitá-las nas situações do cotidiano. Era exatamente o que ele já fazia, de forma amadora. Agora, com a confirmação daquela matéria, soube que estava no caminho certo.

Quando percebia alguma singularidade nas pessoas que observava, Leo imediatamente procurava definir do que se tratava. A postura, a firmeza no olhar, a maneira de modular as frases e entonação da voz, a economia e precisão nos gestos e nas expressões faciais. Catalogava palavras e conceitos como coragem, ousadia, lealdade e generosidade, entre outros. Ao identificá-las, tomava-as para si.

A autoterapia e os diálogos hipotéticos

Praticava sozinho, diálogos e encenações imaginários onde aquelas qualidades se tornavam habituais. Tornou-se mestre naquilo que chamou “diálogos hipotéticos”. Entretanto, criava mentalmente cenários em que era desafiado ou onde a necessidade de argumentação se fazia necessária. Passou a ser obstinado nessa prática, principalmente porque, na vida real, ele simplesmente se sentia paralisado. Apenas depois de passado o episódio, conseguia verbalizar para si mesmo suas argumentações e, se fosse o caso, suas defesas.

O processo de imitação foi aprimorado com o tempo. Essa foi, de certo modo, a sua primeira “terapia”, que agregada à análise e prospecção das palavras e coisas, ampliou grandemente seu raio de atuação.

Entretanto, enfrentando dificuldade de se expressar, especialmente no ambiente familiar, Leo concebeu um alfabeto próprio. Inspirou-se em símbolos de civilizações antigas, incorporando-os em sua criação. Todavia, cada letra possuía um significado profundo, transformando cada palavra escrita em um hieróglifo poderoso. Desenvolveu símbolos específicos para pontuação, letras repetidas e artifícios para disfarçar aquelas que poderiam ser facilmente reconhecidas. No entanto, sempre que podia, sem ser notado, escrevia pequenas frases em lugares pouco acessíveis aos olhos humanos, onde revelava suas verdades. Sentia um prazer imenso ao saber que sua vida estava registrada em afirmações significativas, escondidas em locais onde normalmente ele preferia a invisibilidade.

Mais tarde, com o advento dos computadores e dos primeiros programas de desenho, transformou esse alfabeto em letras digitais, com as quais podia escrever em editores de texto. Ele as usava para espalhar comandos, afirmações, sugestões e lembretes nos lugares onde morou.

Aventuras e metamorfoses. Dando asas à imaginação

A arte e o desenho como apoio na tomada de decisões

Leo passou a usar alianças, às vezes numa mão, às vezes na outra. Elas o incomodavam, portanto, o advertiam constantemente para manter determinada atitude, para estar atento, para usar seus mecanismos de proteção.

Ele criou o hábito de visualizar, através de diagramas, cenários e questionamentos, principalmente diante de provações que exigiam decisões importantes. Desenhava a si mesmo no centro de uma folha de papel em branco, ao seu redor posicionava todos os elementos que poderiam interferir, por nível de importância. Durante esse processo, rabiscava, apagava e reescrevia todas as variáveis até modelar a melhor estratégia. Este recurso o ajudou durante toda a sua vida, identificando possíveis imprevistos e revelando dados que antes não havia levado em consideração.

A experiência de morar sozinho

Alguns fatos na esfera familiar aceleraram sua necessidade de sair para morar sozinho. Em geral, projetava a sua consciência, visualizando as coisas que desejava e as vivia intensamente. Como sempre, a sua imaginação era sua grande aliada. Essa combinação entre o imaginado, os desejos e a vida, criaram acontecimentos singulares.

Foi assim que circunstâncias aparentemente casuais o levaram a ter sua primeira morada numa casa de pescador, em uma encosta, de frente para o mar, num contrato verbal que durou até se mudar para um apartamento. As novas emoções que essa fase lhe ofereceu, davam a impressão de aprovação pela vida, pelo destino, por Deus, apesar de, paradoxalmente, os conflitos familiares terem chegado ao ápice.
Oficialmente, continuava residindo na casa de seus pais, onde comparecia algumas vezes para comer e dormir. No entanto, a visão ampla do mar, do céu azul, do firmamento noturno, do nascer do sol e da lua, na frente da sua janela, eram como um prêmio, uma alegria indescritível.

Comprou móveis usados, fez cortinas de conchas, arrumou suas coisas em caixotes de madeira e comprou um velho frigobar. No entanto, sua maior aquisição foi uma radiola pequena, cuja tampa era a própria caixa de som. A casa, construída de taipa, tinha um cômodo na frente que funcionava como sala, com almofadas grandes sobre esteiras no chão batido, um quarto com rede, um cômodo longo com uma mesinha e bancos, banheiro e um quintal, que dava para um barranco alto, o que a tornava inacessível por ali.

A empatia com a vizinhança

Os vizinhos, curiosos pela novidade, vigiavam sua casa constantemente. Contudo, sua relação com eles foi empática e cheia de trocas de pequenas delicadezas. Respeitavam a sua privacidade e lhe sorriam com os olhos.

Então, as aventuras de Leo se amplificaram de uma maneira imprevisível. Cada conquista lhe dava mais arrojo para tentar empreitadas mais arriscadas. Sempre confiando no poder de sua mente e na sua comunicação com a vida. Certa vez leu, numa revista esotérica, uma frase que o marcou profundamente: “Ter fé é como caminhar no escuro à beira do abismo, movendo-se sobre a mão de Deus.”

Sua evolução nos estudos o levou à universidade, onde se inscreveu em dois grandes programas do governo federal: o projeto Rondon e o projeto Mauá. No primeiro, visitando cidades do interior, tornou-se hábil em pegar caronas, em terras áridas e pouco atendidas por meios de transporte coletivo. Ganhou também experiência em lidar com pessoas simples, com uma comunicação e entendimento comoventes.

Posteriormente, utilizou-se da habilidade recém-adquirida de caroneiro e aventurou-se sozinho por milhares de quilômetros. Passou por diversas localidades em duas semanas, com motoristas de todos os tipos, de caminhoneiros profissionais a malucos afoitos que adentravam estradas pouco usadas à beira-mar, até chegar no Rio de Janeiro.

As muitas moradas

Leo também morou em diversas cidades. Trabalhou de norte ao sul do país, vivendo intensamente todas as fases que essas mudanças lhe proporcionavam. Todavia, a adaptação a cada cenário promovia alterações decisivas em suas atitudes e comportamentos.

A cada transferência, se sentia mais seguro. Com o apoio silencioso de seus aliados invisíveis, ele desvendava as complexidades da alma humana e seu coração se enchia de ternura. Tomou a decisão de se projetar, de ousar expor os seus pensamentos, suas opiniões, de tornar-se mais participativo. As reações favoráveis confirmavam a sua noção de estar conectado com o fluxo da vida.

Histórias fragmentadas e lapidações

Cada fragmento da história de Leo pode desdobrar-se em dezenas de ocorrências, como um holograma cheio de episódios, percepções, sensações e compreensões que se incorporaram à sua bagagem de memórias vivas.

Para Leo, o tempo podia ser relativo e, as vezes, ilusório! Ocasionalmente a observação atenta dos acontecimentos lhe permitia vê-los como se passassem em câmera lenta. Ele se sentia abençoado. Olhava para sua história e percebia, com profunda gratidão, que sempre fora protegido e guiado. E que tudo, mesmo os acontecimentos mais dramáticos, o lapidavam constantemente. Há tempos conversava consigo mesmo, numa dimensão que chamamos futuro. Essa comunicação, na quietude de suas reflexões, lhe trazia a convicção de que, com a ajuda daquela projeção, poderia conquistar todos os estados que sua imaginação pudesse conceber.

Sua consciência, que assimilara felicidade à lucidez, o colocava num patamar muito particular, de onde contemplava suas aventuras e metamorfoses com perfeita aceitação, como um escultor que, finalmente, vê a beleza emergir do mármore, e entende que cada golpe do cinzel era necessário para revelar a obra-prima que sempre esteve lá, escondida nas profundezas da pedra bruta.

Manoel Augusto Queiroz

Fonte: Imagens criadas pelo DALL-E 4 com prompts de Manoel Augusto Queiroz

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