Cânticos Magia e Sincronicidades

Rituais a beira-mar, a lua e as estrelas

As aventuras de Leo o conduziam frequentemente a lugares de imensa beleza, onde sua sensibilidade e imaginação amplificavam o esplendor natural, tornando-o quase sagrado. Sua inclinação à solidão o afastava da vida urbana, levando-o a buscar refúgio nas praias desertas, antes mesmo do nascer do sol. Em cada lugar onde o mar tocava a terra, ele chegava “antes de qualquer vestígio humano”, como gostava de pensar. Caminhava até encontrar abrigo na mata tropical ou entre as dunas, onde se deitava ou sentava em meditação, ouvindo o som hipnótico das ondas. Dentro dessa melodia, ele escutava vozes antigas, cânticos Magia e Sincronicidades tão ancestrais quanto o tempo.

Uma concepção lírica sobre a criação

Ele lera que a criação do mundo material e da Terra se dera através de um grande coro dos primeiros espíritos, diante do trono de Deus. Cada um deles havia recebido um dom, que entreteceu na sua música e, quando materializado, revelou ser um ou vários dos elementos que compõem a natureza. Como resultado, a combinação de suas vozes e intenções criou, em interações de profunda harmonia e beleza, as nuvens, a chuva, árvores, sementes, as estações e tudo que os nossos sentidos percebem no universo físico.

Segundo essa tradição, o espírito cuja música materializada se tornou água, habita em todas as nascentes e rios que fluem e se integram ao mar. Dizem que os ecos dessa grande sinfonia podem ser ouvidos no rugido das ondas ao se debaterem em seu constante vai e vem.

A quietude preparatória para o irromper da luz

Pouco antes do sol despontar no horizonte, há um momento de quietude total. Então, subitamente, o vento ganha ritmo e os sons proliferam—nas folhas, nas ondas, no canto dos pássaros. Tudo parece acelerar, até mesmo as nuvens, que parecem comemorar a chegada da luz.

Sentindo a aproximação desse momento, Leo caminhava até a beira do mar. Ali, realizava um exercício mental que concebera especialmente para essa ocasião. Expandia sua consciência, enterrava os pés na areia, fechava os olhos, abria os braços, e se sentia como energia pura, unificado com os elementos. Dessa forma, fazia conexões com a terra, a água, o ar, e o fogo do sol, que ardia em seu coração. O nível de sua afinidade com o acontecimento o projetava para uma dimensão de puro êxtase.

Após esse ritual, ele andava quilômetros pela orla, ouvindo e sentindo, com a mente expandida, uma sensação de pertencimento e relevância. Ali estavam ele, a terra, o mar, o vento e o sol. Definitivamente, eram sua família, seus amigos, aliados e mestres.

Cânticos Magia e Sincronicidades

Os rastros de seus passos por caminhos à beira-mar

Leo caminhou sozinho por praticamente toda a costa do seu estado natal. Tomando uma condução até determinado local, dali, caminhava pela beira do mar, as vezes por um ou dois dias. Na sua mochila, levava uma rede, agasalhos e apetrechos de acampamento. Dormia nas varandas das casas de veraneio vazias, ou na casa de algum pescador, onde comia e com quem conversava longamente. Ele adorava histórias de pescador. Tinha dois irmãos muito mais velhos servindo na marinha que lhe contaram eventos fantásticos de suas viagens. Como resultado, sentia por eles grande admiração e amor fraterno.

O poeta de cordel que via o mundo dos deuses

Numa praia, que se tornou muito especial em sua vida, um velho pescador, deficiente visual, lhe cantou, com rimas de literatura de cordel, a viagem de Uysses voltando para casa após a guerra. A linguagem simples, a voz limpa e melodiosa, ainda que rude, e as aventuras relatadas o levaram às lágrimas. Logo, viu-se transportado para a Grécia de Homero, o trovador cego, e participou dos desafios e embates que culminaram com o Cavalo e a destruição de Troia. Igualmente, lembrou do seu próprio pai, que também perdera a visão.

Essa emoção criou um vínculo profundo com aquela família. Durante os anos restantes da vida do pescador/menestrel, Leo lhes enviava mensalmente uma cesta básica e os supria com medicamentos necessários. Ocasionalmente, sempre que podia voltava lá, para conversar e, principalmente, ouvir as histórias daquele espírito iluminado, abrigado em um corpo sofrido e marcado por cicatrizes. Cada uma delas evocava uma aventura ou dificuldade de sua vida dedicada ao mar.

Os ouvidos como conchas para a música da existência

Suas caminhadas solitárias pela orla ampliaram enormemente a sua percepção auditiva. A música do mar, provocava ecos nas grutas, entradas e nas saliências, mudando constantemente. A cada curva, uma nova baia se descortinava numa paisagem encantadora, com detalhes únicos e sons muito particulares.

Diante de algumas concavidades, a reverberação se refazia em uma beleza extraordinária, hipnótica. Ele se demorava ali por muito tempo, deixando que aquela música penetrasse em sua consciência. Posteriormente, em momentos difíceis de sua vida, ele mergulhava na memória dessa sonoridade e encontrava alívio e paz.

A liberdade de viver ao ritmo do vento

Leo adorava acampar, e muitas vezes o fazia com amigos. Em alguns lugares, onde um rio adentrava o mar, deixavam-se flutuar por alguns quilômetros, falando pouco, reverenciando a unicidade daqueles momentos. A variedade da paisagem, observada daquele ponto de vista, era indescritível. Eles apenas apontavam, chamando a atenção uns dos outros para a beleza fulgurante que os cercava.

Muitas vezes, levavam redes e dormiam nas varandas das casas vazias. Entretanto, quando acampavam em barracas, limpavam o terreno, reservando lugares para enterrar bem fundo, na areia úmida, as garrafas de água, sucos e refrigerantes. Decerto, também estipulavam demarcações para os dejetos.

À noite, à beira de uma fogueira ou sob a luz das estrelas ou da lua, conversavam, cantavam e jogavam adivinhações. Igualmente, criavam histórias que circulavam, cada um acrescentando algo à história do outro, em muitas voltas, com gargalhadas constantes.

O batismo da alma: conexão com o cosmos

Certa vez, em um desses acampamentos, identificaram algumas estrelas mais conhecidas. Então, decidiram se rebatizar com nomes tirados desses corpos celestes. Muitas dessas estrelas receberam suas denominações de civilizações antigas, como árabes e chineses, que mapearam vastas porções do céu noturno. Em seguida, vinham os nomes dados pelos gregos e romanos.

No próximo acampamento, ao redor de uma carta celeste, cada um escolheu para si um nome que ressoava com sua essência. Assim nasceu a “irmandade das estrelas”, que perdura até hoje.

Vozes em harmonia espiritual com o todo

Logo depois, aguardando o nascer da lua, Leo contou a história da criação do universo através de cânticos dos espíritos primordiais. Ao término, todos ficaram em silêncio profundo, atentos apenas ao momento. De improviso, um deles começou a entoar uma melodia, ao acaso. Depois, outro o acompanhou, com uma melodia diferente, mas harmoniosa. E assim, sucessivamente, todos sussurravam melodias próprias, que foram se entrelaçando com naturalidade. De repente, eles sentiram que algo extraordinário estava acontecendo. Ainda cantando, levantaram-se, olharam-se e deram-se as mãos. Aquele canto elevou-se em harmonia e beleza. Sentiam uma emoção sublime, expressa pelos olhos e pela intensidade de seus toques. Quando a música atingiu um ápice, a lua despontou no horizonte. Eles se abraçaram com emoção, alguns chorando. Seus olhares revelavam deslumbramento por terem sido agraciados com aquele toque de magia.

Esse acontecimento tornou-se um marco em suas vidas, unindo-os de uma forma incomum. Logo após batizarem suas almas com nomes de estrelas, receberam essa confirmação, essa bênção. Muitos outros eventos marcaram seus encontros em praias, açudes e margens de rios.

Enfrentando encontros com o medo

Leo também enfrentou desafios em suas aventuras à beira-mar. Certa vez, deparou-se com um rio caudaloso, intransponível. Teve que voltar pelo mesmo caminho, no final do dia, com a maré alta e uma noite sem lua. Contudo, sua imaginação povoou a escuridão de espíritos benfazejos e, pouco tempo depois, ao chegar a uma estrada que levava a uma vila, viu-se cercado por uma multidão de vaga-lumes. Para ele, uma resposta luminosa à sua oração.

Outra vez, ele se deparou com uma matilha de cães, algo comum naquela época em cidades costeiras. Era noite alta e, ao perceberem seu medo, os cães o cercaram, rosnando e ensaiando ataques. Leo encontrou um tronco com muitos galhos ainda com folhas. Conseguiu arrancar um deles e, de posse dessa arma, afugentou os cães, rosnando como eles. Sentiu-se tomado por um espírito primitivo, feroz, desejando, de fato, ferir alguns deles, como exemplo. Mas logo se afastaram, fugindo. Leo os encontrou outras vezes naquele mesmo lugar, mas eles o evitavam

Desafios à luz das estrelas em pleno mar

Nessa época, Leo possuía uma casa, numa ilha, onde ia com frequência. Ele era a única pessoa de fora a ter um imóvel na vila. Os habitantes locais o chamavam “o proprietário”. Para chegar até lá, ia de ônibus até uma cidadezinha. Esperava um barco da prefeitura que vinha pegar mantimentos, viajava de carona. Certa vez, chegou após a saída do barco e ficou no cais, esperando por um milagre, com três moradores retardatários. Em seguida, atracou uma jangada que logo retornaria à ilha. Lhe foi explicado do perigo de navegarem com muito peso em maré vazante, onde o barco faria diversos zigue-zagues, evitando a violência das ondas. A lua estava cheia e a água cobria constantemente o barco, cujas mercadorias e sua bagagem, estavam cobertas por um plástico preto.

A princípio, a sensação de extrema fragilidade de sua situação chegou a lhe provocar pânico. Entretanto, a visão estonteante do luar, iluminando o vasto mar e prateando a espuma das ondas o inundou. Ele ergueu-se, equilibrando-se ao balanço da jangada, com as ondas lambendo-lhe os pés. Era como se o tempo houvesse parado. Ao seu redor, num raio de 360 graus tudo era negrume, movimento e reflexos. Sentiu uma gratidão infinita por aquele momento. Posteriormente, já próximos à ilha, foi-lhes sugerido nadarem, no fim do trajeto, para aliviar o peso. Simultaneamente, ele e mais três mergulharam no mar revolto, vendo a praia ainda distante. Desse modo, nadaram com tranquilidade, para evitar desperdícios de força e, quando finalmente chegaram na areia, exaustos, riram e se olharam como se fossem velhos conhecidos.

As pontes entre realidades

Aonde quer que fosse, sozinho, na natureza, ou mesmo em casa, Leo experimentava acontecimentos que denotavam um entrelaçamento de realidades. Com efeito, ao acreditar que a vida falava com ele constantemente, esses acontecimentos habitavam o seu cotidiano de forma natural. Por conseguinte, ao usar sua imaginação, ele acionava passagens entre mundos. Uma vez, num livro de cabala, onde um rabino respondia sobre o tempo e a realidade, ele leu que esses eventos eram comuns em pessoas com a percepção aguçada.

A conquista da espontaneidade

De fato, tendo atravessado muitas fases, algumas bastante conturbadas, Leo se sente maduro. Finalmente, a vontade na vida. Com o coração leve e a mente serena, ele contempla o horizonte da sua existência e sente uma paz indescritível. Afinal, cada passo dado, cada aventura vivida em sua trajetória, moldaram-no em um ser pleno e consciente. Finalmente, agora, ele abraça o presente com gratidão, sabendo que cada momento é uma dádiva. A conexão com a natureza e o universo é sua fonte de inspiração e sua força. Afinal, Leo segue a sua jornada, com a certeza de que a vida é um contínuo aprendizado e que a verdadeira felicidade está em viver o agora, com plenitude e gratidão.

Manoel Queiroz

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