Cartografias do imaginário

Entre dicionários e enciclopédias

Desde muito jovem, Leo apaixonou-se pelas palavras e pelos universos que elas desvendavam. Criou o hábito de anotar ideias, questionamentos e novas expressões que enriqueciam seu vocabulário. Sempre que podia, refugiava-se nas bibliotecas, onde se perdia entre dicionários e enciclopédias e nas cartografias do imaginário.

A verdadeira paixão pelos livros

Mas a verdadeira paixão pelos livros começou em casa. Sua mãe, professora, valorizava a leitura, hábito compartilhado por dois de seus muitos irmãos, Pedro e Miguel. Pedro, muito mais velho, morava distante, mas enviava regularmente à família coleções de livros adquiridas em bancas de jornal. Com capas duras e títulos dourados, aqueles volumes seduziam Leo, apesar da falta de ilustrações que inicialmente o desanimava.

Miguel, seu mentor, ressaltava que aquelas páginas guardavam aventuras fantásticas e imensa sabedoria. Entretanto, Miguel também partiu em busca de novas oportunidades. Na despedida, levou Leo para um quintal abandonado ao lado de casa, onde libertaram um galo de campina, tesouro de Miguel. Em silêncio, viram a ave pousar em galhos próximos, um pouco aturdida, e depois sumir na imensidão do céu.

Cultivar o hábito da leitura preciso é

De volta à casa, Miguel entregou a Leo um pacote e disse: “Cultive o hábito da leitura. Os livros abrirão muitas portas e lhe levarão a lugares que nem sonhamos.” Na madrugada seguinte, Miguel partiu em busca de seus sonhos.

O pacote continha Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke, traduzido por Cecília Meireles. Relutante no início, Leo logo se viu cativado. Aquelas dez cartas pareciam destinadas a ele, abrindo novas dimensões e expandindo seu mundo interior. Esse primeiro livro tornou-se um tesouro, símbolo de um amor fraterno que raramente sentira.

Devorando livros e conhecimento

A partir de então, Leo buscava avidamente tudo o que pudesse ler, tanto em casa quanto na escola. Mergulhava nos enredos com paixão, transportando-se para outras épocas e vivendo os personagens intensamente. Leu, com profundo interesse, o Antigo e o Novo Testamentos, entre diversos outros livros. Embora muito fosse inicialmente incompreensível, o que apreendia deixava marcas profundas, refletidas em suas muitas anotações e, em especial, em suas atitudes.

Enfrentando a sensação de isolamento, Leo desenvolveu estratégias para lidar com seus desafios. Anotava palavras, dissecava seus significados e repetia-as como mantras. Termos como “forte”, “força” e “fortaleza”, que tinham os mesmos atributos, tornaram-se símbolos de resistência. Nas caminhadas solitárias pela beira do mar, tocava nas pedras, sentindo-se como elas, inabalável. Estava encantado pela noção de que pedras guardavam longas histórias. Desenvolveu uma tentativa de comunicação. Pedindo permissão, mentalmente ele dizia: “me conte a sua história”!

Do mesmo modo, apreender os atributos de cada coisa que encontrava na natureza incorporou-se e expandiu-se ao mundo. Casas, igrejas, museus, estátuas, bancos de praça, tudo podia se tornar objeto de atenção e sondagem. Para sua surpresa coisas incríveis começaram a acontecer. Ele passou a perceber informações muito além do seu controle, como se tivesse acionado a chave de acesso de um banco de dados que continha a história de praticamente tudo.

A importância da repetição das palavras como mantras

Uma das palavras mais profundamente analisadas por Leo foi “silêncio”. Ele encontrou um provérbio chinês que dizia: “A palavra é prata, o silêncio é ouro.” Sentiu-se como possuidor de um grande tesouro, pois palavras e silêncios eram parte de sua essência. Ai, tentou experimentar o silêncio de várias formas, até que lembrou de uma técnica usada em momentos de conflito: despedaçar mentalmente a cena à sua frente e lançar-se num vazio totalmente silencioso. Esse “salto” proporcionava-lhe paz profunda e algumas vivências extraordinárias.

Outra palavra crucial foi “lucidez”. Leo explorou significados como clareza mental, discernimento e perspicácia entre outros. Cada um deles provocou um aprofundando nas capacidades mentais latentes, inerentes a todo ser humano. A palavra “felicidade” também foi analisada. A princípio comparada a seus opostos, finalmente, pela sua magnitude, distinguiu-se como algo além das dualidades e dos conflitos.

Além disso, ele buscou experimentar felicidade de maneira prática, mesmo na escassez de relacionamentos íntimos. Então, concluiu que a combinação de felicidade e lucidez era ideal para si. Todavia, compreendeu que sua mente estava cercada de influências de um passado mal resolvido, e trabalhou para se reprogramar com palavras-chave, gestos e onomatopeias, adestrando-se como a um animal, sem violência, mas com firmeza.

A imaginação e o limite da sanidade mental

A imaginação sempre foi um aliado precioso para Leo, permitindo-lhe visualizar e sentir estados desejados, além de proporcionar respostas e aventuras em mundos imaginários. Consciente de que suas excentricidades podiam parecer insanidade aos olhos comuns, investigou profundamente as doenças mentais. Então, visitou sanatórios para entender como seria o afastamento total de qualquer porto seguro. A loucura, ele percebeu, era alvo de incompreensão e crueldade, algo que ele também havia experimentado, na forma de escárnio pelo sua esquisitice. Isolava-se, desconfiado. Presumia ter passado a maior parte da vida solitário.

O exercício da racionalidade

De antemão, treinava diálogos hipotéticos para se defender verbalmente, e, quando fortemente agredido, reagia com uma ferocidade que surpreendia. Raramente se envolvia em violência física, preferindo respostas racionais e argumentos sólidos. Desenvolveu uma adaptabilidade incomum, enfrentando crises graves com destemor e prontidão. Em certas fases, chegou a sentir-se à vontade na vida, como sempre sonhara.

No entanto, esta exigia um ajustamento e sintonia fina constantes. Ele se sentia apto, como um soldado. Leo seguia em frente, ajustando-se e reformulando sua mente conscientemente, calmamente ocupando seu espaço e desempenhando seu papel no palco da vida, sempre pronto para o próximo ato e sem nunca abandonar as cartografias do imaginário.

Manoel Queiroz

Fonte: Imagens criadas pelo DALL-E 4 com prompts de Manoel Augusto Queiroz.

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