A unidade fragmentada: de Freud a Butler

A unidade de Freud e Jobim

Quem flerta ou namora com a psicanálise muito provavelmente já ouviu falar de uma das obras mais conhecidas de Freud, Psicologia das Massas e a Análise do Eu. Dentre tantas questões, o pai da psicanálise aborda a teoria do instinto gregário: que, a partir da observação da multiplicação celular, defende que as pessoas seguiriam uma tendência de formar grupos, seriam compelidas umas às outras.  

Afinal, quem nunca ouviu Tom Jobim com o seu “é impossível ser feliz sozinho”? Encontrar um par, um grupo. Pessoas com quem você se identifica, que possam lhe ouvir sem (tanto) julgamento, que confirmem o seu pensamento, que concordem com o que você diz, que lhe acolham, que lhe reconheçam. Pessoas para chamar de suas: sua esposa, sua amiga, seu colega, seu parceiro. Como é bom ser aceito, como é bom poder contar com alguém. Para ler mais sobre reconhecimento, acesse Por que fazem corpo mole? Entendendo a dialética do reconhecimento.

A unidade de Calligaris e Arendt

O grupo, portanto, é uma unidade. A família é uma unidade. E assim por diante. A unidade indica que os agentes do discurso falam apoiados nas mesmas pressuposições. Por isso o discurso pode parecer sempre o mesmo. Podemos perceber essa tendência de maneira ainda mais evidente nos grupos religiosos e políticos. Mas as falas tendenciosas nos impregnam por todos os grupos dos quais participemos. Em sua obra O grupo e o mal: estudo sobre a perversão social, Contardo Calligaris, baseado em Freud e Hannah Arendt, chega à conclusão de que o indivíduo abdica de sua personalidade em nome de um “fascínio por servir ao outro”.

Prova disso é o cúmplice. Aquele que testemunha um crime de alguém que ama ou admira tende a relevar os fatos. Por isso tantos pais e amantes encobrem crimes de seus filhos e companheiros respectivamente. Por isso tantas pessoas se surpreendem ao descobrir certos comportamentos, antes desconhecidos, de seus entes queridos. “Ele jamais faria isso”. Talvez, não sozinho. 

A perversão é formalmente combatida pela sociedade, mas exercida por debaixo dos panos, sem que sequer percebamos. Não percebemos que tentamos de tudo para sermos aceitos. Para que não nos sintamos sozinhos, excluídos, não fazendo parte. Afinal, os discursos têm que convergir, não é mesmo?

Tecnologia e individualismo

Bom, apesar das teorias bem fundamentadas de Freud, Jobim, Arendt e Calligaris, não dá para negar que, talvez, já estejamos em um outro lugar em termos culturais. À medida que a tecnologia avança e temos mais fácil acesso à informação, outras soluções bem como outros problemas acabam surgindo. Namoro virtual, home office, cursos EAD e jogos online são soluções que produzem o individualismo. O individualismo, por sua vez, pode ter diversos efeitos, positivos e negativos. 

Homem sozinho e pensativo olhando para o mar

Se pensarmos a partir do referencial evolucionista, poderíamos associar o individualismo a uma contracorrente à manutenção da espécie, ao coletivo. Ou, pelo menos, avesso ao formato de sociedade que temos hoje. Já, do ponto de vista da psique, poderia ser uma revolução. Poderia, inclusive, representar liberdade, autonomia. 

Butler, sobre a fragmentação da unidade

Judith Butler questiona em seu Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade se a unidade “é necessária para a ação política efetiva”. Nesse caso, ela se refere ao movimento feminista. Acredita que o feminino e, portanto, o feminismo tem várias faces e, por consequência, diferentes frentes. Ou seja, há diversas maneiras de ser mulher. Butler nos convida a refletir se o feminismo enquanto unidade, como uma única voz, não acabaria atrapalhando as aquisições políticas das mulheres, já que as suas possibilidades deveriam ser infinitas.

Citação de Judith Butler em Problemas de Gênero, pág. 40:

“Não será, precisamente, a insistência prematura no objetivo de unidade a causa da fragmentação cada vez maior e mais acirrada nas fileiras? Certas formas aceitas de fragmentação podem facilitar a ação, e isso exatamente porque a ‘unidade’ da categoria das mulheres não é nem pressuposta nem desejada.
(…) tratar-se-á de uma assembleia que permita múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e definidor.”
A sociedade fragmentada

Agora, pensemos em todos os transtornos que temos visto crescer no mundo: depressão, ansiedade, bipolaridade, TDAH. O que as pessoas com esses transtornos têm em comum? Elas tentam suportar a realidade que se apresenta. Uma realidade que já não cabe mais dentro da atual conjuntura cultural. Assim, a sociedade vai se fragmentando em depressivos, ansiosos, bipolares, desatenciosos. Pessoas que querem fazer diferente, mas com certa dificuldade de abandonar o que é mais aceitável, a normalidade. E cresce o número de autistas! Pessoas que fazem diferente e que nem têm ideia do que é normal? Afinal, o normal ainda é pressuposto e desejado como já foi um dia?

O que quero dizer com tudo isso? 

Se a formação de bandos tende a promover uma ‘dessubjetivação’ das pessoas ou ‘anulação’ do pensamento crítico e se pensarmos a evolução da espécie também a partir de uma transformação psíquica, podemos esperar uma tendência à fragmentação, ao individualismo, não? Seriam os formatos de unidade familiar que mais crescem no mundo – solteiro ou casado, com ou sem animal de estimação, sem filhos – um sinal disso?

Afinal, se há diversas formas de ser mulher, também existem diferentes maneiras de ser humano, certo? Talvez, tudo seja só uma questão de tempo.

Compartilhar

Deixe um comentário