A felicidade num Estado devorador

Medindo a felicidade

Na semana passada, a BBC News Brasil entrevistou o físico espanhol Alejandro Cencerrado, que fala dos resultados de uma pesquisa realizada por ele mesmo, como analista do Instituto da Felicidade de Copenhague, na Dinamarca. A matéria Latinos são mais felizes do que o esperado dada a riqueza de seus países traz uma visão complementar à tão difundida ideia de que os países nórdicos possuem os povos mais felizes do planeta. Ou que, pelo menos, assim se autodeclaram.

Cencerrado explica que apesar de ser uma medida subjetiva, os valores se repetem dentro de um mesmo povo. E que o erro – pessoas que se confundem ou que enganam o entrevistador – normalmente se dá para mais, e não para menos.

…especialmente na América Latina – onde, por sinal, os índices de felicidade são geralmente superaltos.

Os latino-americanos estão fora do que é estatisticamente normal, considerando a riqueza dos seus países.”

O físico acredita que muitas pessoas “tendem a exagerar como a sua vida vai bem”, pois, numa escala de 0 a 10, muitos “colocam 10 na sua satisfação com a vida”. O que ele afirma sair do normal, visto que “as respostas geralmente seguem a curva de Gauss”.

Arquivo pessoal: Curva gaussiana na estratificação de dados

A fantasia dos latinos na corrupção

Ele associa esses resultados com a capacidade de se relacionar dos latino-americanos, que difere dos outros povos, afirmando que as relações são muito próximas e, inclusive, acredita ser essa “uma das razões por que a economia vai mal”.

…no fim das contas, quanto mais próximas são as relações, maior a possibilidade de que o governo ou os chefes das grandes instituições acabem contratando seus primos ou amigos.

Cencerrado acredita que essa é a fonte “da corrupção, da desconfiança e de todo o mal que acontece em um país”. Sendo assim, temos nesses países, de um lado, as fortes relações que entretêm os povos – através de privilégios e farras – e, de outro, a eterna desconfiança de estar sendo passado para trás ou de estar perdendo de ganhar algo. O primeiro, que aparece nas pesquisas sobre felicidade, e o segundo, que é, de fato, evidenciado no levantamento anual de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).

Fora que, como já trouxemos antes aqui na coluna, o Brasil, por exemplo, é líder em número de pessoas que sofrem com ansiedade e um dos líderes em número de depressivos. Poderíamos dizer, talvez, que os latinos fantasiam mais, têm mais esperança, iludem-se ou se enganam mais do que os nórdicos?

Felicidade é dinheiro?

Cencerrado explica que existe uma relação de proporção direta entre felicidade e necessidades básicas. Ou seja, quantos mais objetivos de conquistas básicas se tem – comida, casa, estudos, carro – maiores as oportunidades de se vivenciar a felicidade. É como falam os auditores da qualidade: “quanto maior o número de problemas ou de não conformidades, maior a quantidade de oportunidades de melhoria”.

Se você não tiver o que comer, ter dinheiro para comer irá fazer você feliz. Se você não tiver dinheiro para pagar os estudos do seu filho, ter dinheiro para pagá-los irá fazer você feliz.

Agora, se estas necessidades estiverem satisfeitas, mais dinheiro não irá fazer você mais feliz.

De fato, chega um momento em que a felicidade das pessoas que têm muito dinheiro começa a diminuir. Os muito ricos são menos felizes do que os ricos.

Para chegar a este nível de riqueza, você precisa ter desenvolvido uma certa obsessão por ser rico, o que é muito negativo para a felicidade.

E complementa que os povos nórdicos normalmente estão em posição superior nas listas de felicidade pois “têm um Estado de bem-estar muito forte… Existe muito pouca corrupção porque, como as relações próximas não são tão fortes, as instituições são como uma grande família”.

Um Estado devorador

Então, parece que quando o Estado ilude o povo, não resta nada mais a não ser se iludir. Manter esse véu de ilusão através de afirmações como “sou brasileiro e não desisto nunca”. O que me faz pensar por que nações como essa apresentam históricos tão robustos de governos populistas. Como uma mãe que engole o filho, ao não permitir que ele se torne independente, ao dar mais do que o necessário – dar, sem limites – e, em contrapartida, exigir receber mais do que é possível. Amor, presença, dinheiro. Repito, não como uma rede familiar, mas como uma mãe devoradora, assim definiria Lacan.

Essa mãe, representada pela boca aberta do crocodilo, tem como par um pai ausente. Esse pai que Contardo Calligaris, em seu ‘Hello, Brasil!’, diz que aqueles que vieram colonizar o país procuravam substituir: todos os povos buscavam por um pai, um nome. Ou porque foram arrancados dele à força, como é o caso dos escravos africanos; ou porque ficaram órfãos com a guerra, como é o caso dos italianos e dos alemães; ou porque foram abandonados por ele ao serem enviados em missão à terra recém-descoberta, como é o caso dos portugueses. Em qualquer um dos casos, o pai não se encontra. Esse, que seria representado por um pedaço de pau, que impediria que a boca do crocodilo, ou melhor, da mãe, fechasse e devorasse os filhos.

Assim, os latinos se enganam quanto ao seu julgamento de felicidade porque o Estado boca de jacaré os engana sobre a definição de felicidade.

Compartilhar

Deixe um comentário