Matando o câncer com vinagre
A minissérie ‘Apple Cider Vinegar’ (no português, Vinagre de Maçã) lançada recentemente pela Netflix traz um pouco da história da influencer australiana Belle Gibson entrelaçada a outras tramas reais e fictícias relacionadas ao câncer. Gibson afirmou em suas redes sociais ter se curado de um câncer terminal mudando os seus hábitos alimentares. A partir dessas afirmações, ela construiu um império de bem-estar online, incluindo as vendas de seu livro de receitas ‘The Whole Pantry: 100 Recipes for Eating Deliciously, Getting Back to Basics’ e os fraudulentos levantamentos de fundos para caridade.
Para bolar as suas estratégias de marketing, Gibson se baseou nos relatos da australiana Jessica Ainscough – a personagem Milla Blake -, que enfrentava um sarcoma epitelioide através de terapias alternativas, inclusive a Terapia Gerson. Ainscough tinha um blog chamado ‘Wellness Warrior’ (na tradução livre, “guerreiro do bem-estar”) e possuía 1,5 milhões de seguidores.
Terapia Gerson
A terapia foi desenvolvida pelo médico alemão – imigrado para os Estados Unidos – Max Gerson e se utiliza de uma dieta de desintoxicação, no intuito de reconstruir o sistema imunológico, combinando suplementos de vitaminas e minerais. A dieta é baseada em alimentos orgânicos e vegetarianos. Tudo teria começado quando o próprio Gerson, que sofria de enxaqueca, resolveu criar uma dieta vegetariana, a fim de curar as suas dores. Segundo Gerson, o resultado foi positivo. E, a partir daí, foi tentando tratar pacientes com diferentes diagnósticos da mesma forma.
Apesar de afirmar que até pacientes com câncer em estado avançado poderiam se curar, nenhum caso de sucesso pôde ser comprovado.
…apenas 18 dos 38 pacientes permaneceram no estudo por 5 anos ou até morrerem; sua sobrevida média foi de 9 meses desde o início do estudo. Os outros 20 pacientes foram perdidos no acompanhamento. Nos 5 anos, 17 dos 18 haviam morrido, e um paciente com linfoma não-Hodgkin avançado estava vivo, mas não livre da doença. No geral, este estudo não ofereceu dados significativos para apoiar a eficácia clínica das abordagens estudadas.
Segundo o pai de Jessica, ela morreu por complicações na radioterapia, depois de ter sido dada como curada, após dois anos de Terapia Gerson.
O apelo à natureza
Assim como Jessica, muitos de nós temos tentado meio que voltar no tempo no intuito de encontrar soluções para os problemas em que nos metemos aqui, “no futuro”. Então, saímos dos ultraprocessados e voltamos aos naturais. Mas Amanda Ruggeri, em seu artigo Por que produtos naturais nem sempre são melhores que sintéticos vem tentar nos lembrar o que afinal provém da natureza.
O chamado “apelo à natureza”, ou “falácia naturalista”, é um dos tipos mais comumente observados de falácias lógicas – falhas de raciocínio que podem fazer uma afirmação parecer surpreendentemente convincente.
Ruggeri afirma que essa estratégia “é adotada com frequência nas redes sociais, por marcas e influenciadores, e por políticos de todo o planeta”. Dessa forma, ela lista alguns elementos da natureza que têm o poder de destruição, doença ou mal-estar e componentes criados pelo homem – que, insiste ela, também é da natureza e se utiliza de itens da natureza – para, por exemplo, combater doenças e mortalidades.
Das narrativas do saudável
De fato, é importante prestarmos atenção às narrativas da saudabilidade. Eu, que frequento lugares com pessoas que expelem a “falácia naturalista”, recebi delas diversas indicações de um determinado restaurante vegetariano. Fui lá, então, cheia de expectativas e me deparei com uma comida extremamente gordurosa, com excesso de sódio, carboidrato e açúcar. Carne não tinha. De nenhum tipo. Em compensação, os alimentos processados e ricos em dopamina mantêm uma grande e fiel clientela, crente de que o que consomem é da ordem do saudável.
Mas, afinal, o que é saudável? Enquanto os discursos alimentam as nossas mentes, os alimentos nutrem corpos e mentes. Quanto mais crentes estivermos de algo, mais fechados estaremos para o novo. Mais os excessos tomam conta e, portanto, menos expostos às oportunidades estaremos. Sócrates é considerado um grande pensador porque ele sabia que nada sabia. Talvez, saudável seja estar disposto a experimentar o desconhecido.