O fim do machismo: um voo rasante

O primeiro homem da minha vida

Éramos duas meninas em casa. Talvez tenhamos tido sorte pelo meu pai ser um homem menos machista que a maioria – regionalismos à parte, claro. Ou, talvez, tenhamos tido sorte pelo meu pai não ter enxergado outra saída para a sua masculinidade, tendo em vista que nenhum cromossomo Y havia sido selecionado em sua produção. Não havia um menino para ser usado de comparativo nem para o meu pai projetar nele possíveis desejos machistas. 

O fato é que tivemos sorte, eu e a minha irmã, pois não restou para nós nada além da liberdade e da fé que meu pai buscava para ele mesmo. Tratava-se de matar dois coelhos com uma única cajadada? Bom, que sorte que ele economizou na tacada. 

Liberdade através da leitura, do conhecimento. Já dizia o meu pai “o conhecimento liberta, minhas filhas”. E liberdade vivemos. Fé para acreditar que tudo é possível, inclusive, que as suas filhas eram capazes de qualquer coisa que desejassem, assim como ele. Voem! E, assim, voamos.

Meninos não choram

E, por mais longe que eu tenha ido, vinte anos depois, lá estava eu com um homem que se sentia enojado cada vez que eu chorava depois de uma discussão com ele. E ainda dizia “não confio em mulheres que choram”.  Na verdade, ele não confiava nas lágrimas. E, de fato, nunca se entregava a elas. Às lágrimas ou a qualquer atitude que o colocasse em uma posição vulnerável. 

Nana Queiroz, autora do livro Os meninos são a cura do machismo: como educar crianças para que vivam uma masculinidade da qual nos orgulhemos, diz que, para escrevê-lo, entrevistou cerca de 600 homens adultos. Ela cita:

Um número considerável deles lamentava não poder manifestar afeto por mulheres ou por outros homens sem serem tachados de “maricas.

E ainda:

32% não tinham uma única pessoa no mundo com quem se sentiriam confortáveis para chorar

Um dos homens entrevistados relatou:

Já feri muitas pessoas para provar ser homem. Traí para ser homem, briguei para ser homem. Mas, quando quis mostrar meu outro lado, só vi olhares que julgam.
Suicídio: os homens também precisam falar sobre

Em seu livro, Nana fala que:

Segundo o IBGE, um homem entre 20 e 24 anos tem onze vezes mais chances de não chegar aos 25 anos, na comparação com uma mulher da mesma idade. A mortalidade masculina é superior à feminina ao longo de toda a vida na maioria dos países, e entre jovens e jovens adultos, ela tem seu pico. (…) Mortes por causas externas, normalmente relacionadas à velocidade, à violência, à dificuldade de manifestar vulnerabilidade e à necessidade de provar coragem de maneiras imprudentes — empilham-se homicídios, suicídios, acidentes de trânsito, afogamentos, quedas acidentais, entre outros. Os homens também são os líderes no ranking de suicídios. E isso é agravado pelo mito de que depressão é frescura e terapia é “coisa de mulher”.

Na Austrália, o suicídio é considerado um fenômeno de gênero. Uma pesquisa científica de 2010 mostrou que, pelo menos, cinco homens se matam por dia e que, em 2005, 80% das mortes por suicídio foram do sexo masculino. Para mais informações sobre a pesquisa, acesse Pathways to Despair: The Social Determinants of male suicide (aged 25-44), Central Coast, NSW. Dados mais recentes publicados pela organização Beyond Blue mostram que dos nove suicídios diários na Austrália, sete são de homens. E ainda, o número de homens que se matam é praticamente o dobro da quantidade de vítimas nas estradas nacionais todos os anos. Assim, surgem diversos serviços de apoio voltadas a eles, como Men Care Too, Central Coast Community Men’s Shed, Mensline Australia, The Men’s Table, além de Beyond Blue.

A gente fala muito de feminilidade, feminismo, machismo. E esquecemos do sofrimento do homem num mundo em que o machismo é disseminado inclusive pelas mulheres. Onde o machismo é esperado pelos machos amigos, como uma senha de entrada para o clube – uma forma de se reconhecerem entre si -, e pelas fêmeas parceiras, que desejam ser salvas, protegidas e excitadas. Machismo parece, então, um requisito.

Nana provoca as ativistas de plantão:

Sinto que muitas feministas gastam energia demais com a falácia de que não temos tempo para discutir as dores masculinas, pois as violências a que as mulheres estão submetidas são mais urgentes. Mas e se justamente esse pensamento estiver nos impedindo de identificar a raiz dessa violência e dar cabo dela de vez? (…) Será que o medo, a dor e a vergonha não eram, afinal, os pais de todas as violências?
Conhecer os sentimentos liberta!

Pegando esse raciocínio, poderíamos, inclusive, pensar na culpa, na raiva, na frustração e até mesmo em todos os bons sentimentos que não somos ensinados a nomear. Muito menos os meninos. Que não somos ensinados a enfrentar. Muito menos os meninos. Que são rapidamente substituídos por outros, ou ainda por doces e brinquedos ou por violências verbal e física.  

Assim, voltamos, como de praxe, à infância. Certamente. Afinal, onde tudo tem início. Onde moram as maiores possibilidades. Insisto: de quantas formas é possível ser? De quantas formas uma menina pode ser mulher e de quantas formas um menino pode ser homem?

Por sorte, meu pai não nos criou baseado em gênero. Não nos tratava como meninas, mas como cérebros ambulantes. O céu sempre foi o limite. Para ele e para nós.

Só pra contrariar, eu diria que não só os meninos, mas todos, sem exceção, são a cura do machismo. Adultos, meninos e meninas que sejam livres para respeitar os seus próprios sentimentos e cuidar de si mesmos, que sejam capazes de voar. Seria esse o início do fim? 

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