Sexo, gênero e psicanálise

Cirurgia trans

Em Sex Education, série britânica da Netflix, o tema “transgênero” é abordado com bastante naturalidade, em especial, na sua quarta e última temporada. Mas essa é uma questão com muitas polêmicas que envolvem discussões, inclusive, sobre a disponibilidade cirúrgica nas redes públicas de saúde em todo o mundo.

As primeiras cirurgias de “mudança de sexo” datam dos anos 1930. Na Inglaterra, a clínica Tavistok, do sistema público e alvo recente de polêmicas, anunciou o encerramento de suas atividades, depois de 30 anos tratando de crianças e adolescentes que não se identificam com o seu sexo biológico, através de acompanhamento psiquiátrico e psicológico, manipulação hormonal e intervenção cirúrgica. Para saber mais, acesse Inglaterra. Crianças transgênero: por que a clinica Tavistok vai fechar.

No Brasil, a primeira operação de redesignação sexual pelo SUS foi realizada em agosto deste ano numa mulher trans, bailarina e professora de dança de 47 anos. Yohanna de Santana vinha sendo acompanhada desde 2018. Dentre os critérios adotados para a realização dos procedimentos cirúrgicos pelo Ministério da Saúde, estão: idade mínima de 21 anos e, pelo menos, dois anos de acompanhamento psicológico. Para saber mais, acesse Bahia faz primeira cirurgia de redesignação sexual pelo SUS.

Eu sou o monstro que vos fala
Pintura de um Frankenstein ativista em muro

Paul B. Preciado é um homem trans, filósofo, escritor e um dos principais pensadores contemporâneos das novas políticas do corpo, de gênero e de sexualidade. Ele é o autor do livro “Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas”. No final de 2019, Paul foi convidado a participar da Jornada Internacional da Escola da Causa Freudiana em Paris. O tema era “Mulheres na psicanálise” e ele acabou discursando para 3500 psicanalistas. 

O discurso de Paul trazia certo ressentimento quanto à abordagem psicanalítica supostamente arraigada à epistemologia da diferença sexual e, portanto, ao regime patriarco-colonial. Bom, tendo em vista os seus 17 anos de análise pessoal, assim como as diferentes visões da psicanálise nos mais diversos países, com seus posicionamentos quanto à análise leiga, por exemplo, poderíamos considerar, de fato, esse “suposto saber”. 

Considerando ainda Freud e Lacan ao pé da letra, com os seus respectivos “Complexo de Édipo” e “confusão do órgão com o significante”, também é plausível a reclamação de Paul. No entanto, é importante termos em mente que nem o nascimento da psicanálise nem a sua proposta nunca foi e nunca será calcada no “pé da letra”, no palpável. A psicanálise sequer pensava em brotar quando Hegel, Descartes, Kant já preparavam o terreno.

Mas, afinal, o que é Psicanálise?

A psicanálise é filosofia, subjetividade, não determinação. Por trás do Complexo de Édipo, há um matema com variáveis desconhecidas, que podem mudar à medida que o tempo passa. Por que não? Se Freud deixou isso claro? Mas, afinal, o que fica claro na psicanálise? Além disso, não podemos esquecer que Freud, Lacan, Preciado são apenas homens. Homens com opiniões, homens de tempos diferentes, que ora fazem sentido ora não. 

No frigir dos ovos, a psicanálise trata de procurar formas de sobreviver, sendo todas elas possíveis, contanto que o sujeito dê conta. Não é disso, afinal, que se trata? Desde quando a psicanálise precisa de uma epistemologia, se o que conduz a análise é o desejo do sujeito?

E o discurso diz respeito a quem?

É possível ver no discurso de Paul Preciado um discurso, que não se encaixa apenas na comunidade trans, mas que cabe a todos nós, que tentamos sobreviver numa sociedade, numa civilização. Todos nós nos debatemos todos dias a fim de encontrar saídas, para que nos sintamos um pouco menos desconfortáveis diante de expectativas, pessoas e normas julgadoras. 

Citação de Preciado extraída de “Eu sou o monstro que vos fala” (pág. 89-90):

Digo isso a partir da minha posição de homem trans, de corpo não binário que se transformou para poder sair de sua antiga ‘jaula’ e sobreviver inventando, dia após dia, e de modo precário, outras práticas de liberdade.

Todos tentamos. Sair da jaula. Ter mais liberdade. Seja com as nossas sublimações, explosões, solidões, análises, transformações, escolhas difíceis. Seja com os nossos fracassos.

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