É amor de…
A nossa coluna Crônicas desta quarta-feira está demais, com a incrível Ana Madalena que narra uma estória mirabolante dos tempos de adolescência dela e de sua turma de colégio de arrepiar: amor que fica é amor de…O resto você já deve imaginar, não? Então se divirta com essa maravilhosa peça de ficção dos idos dos anos 1970, 1980 e 2025.
Baseada em fatos reais, alguns que ainda vão acontecer!
Novembro de 2025
Dizem que há três modos de vermos a vida: através da realidade, da imaginação ou através de outra pessoa. Hoje eu vou ser essa outra pessoa. E a história que vou contar aconteceu há muitos anos, quando Madu era uma mocinha. Você pode até indagar o porquê dessa digressão, uma vez que faz tanto tempo, que até já entrou para o esquecimento… Será? Então, como explicar o que aconteceu na última reunião de amigos dos tempos de colégio?
A festa
Era quase meia noite. A banda tocava animada os hits das décadas de 70 e 80. Todos dançavam alegremente! Desde a pandemia a turma do pré 80 ainda não se encontrara. Estavam eufóricos, a não ser por um colega que olhava tudo de modo distante; ele era daqueles que nunca participara das festinhas, nem tão pouco do grupo do whats, talvez por ter sido extremamente tímido e etiquetado como esquisito. Deve ter sofrido muito bullying, coitado, mas ali, diria que parecia estar em paz com seu passado. Ele estava acompanhado por uma mulher claramente mais velha do que ele, mas bastante animada e parecendo feliz. Madu assistia a tudo com um sorriso de Monalisa, daqueles indecifráveis, mas eram seus olhos aguados que denunciavam a emoção reprimida. Ah… Os olhos de Madu… Olhos para todos os gostos!
O reencontro com a galera
A banda fez um intervalo rápido e Madu aproveitou a ocasião para retocar a maquiagem. Em vez de seguir para a esquerda, caminho mais rápido para o toilet feminino, ela contornou o salão e passou em frente ao masculino, onde havia uma pequena fila de espera. E como quem faz uma revista à tropa, passou por cada um daqueles rapazes, agora sessentões e perguntou:
- Como vão os meus meninos?
Ela não esperou as expressões de espanto, nem os comentários. Seguiu de volta para o salão onde, com sorriso de orelha a orelha, dançou com seu marido sua música preferida, “Outra vez”, de Roberto Carlos. Madu girava o corpo de uma forma sensual, enquanto cantava os versos da música quase como uma devoção. Que coisa linda de se ver! O jogo de luzes coloridas de repente ficou apenas com a luz branca, iluminando todos. Foi perceptível a reação dos homens ali presentes. Eu, que sou expert em leitura labial, entendi quando um grupinho masculino comentou entre si:
- Não é possível! Vocês estão pensando o mesmo que eu?
- O sorriso está bem diferente…
- Quem é aquele homem que está com ela? Estudou com a gente? Era do nosso pré?
- Vocês viram o jeito de dançar? Lembram quem fazia aquele movimento?
Janeiro de 1977
O verão estava escaldante! Ninguém aguentava ficar muito tempo dentro de casa e por isso as atividades ao ar livre eram as preferidas de todos. Por sorte, no Natal, a maioria ganhou bicicletas! Era um tempo feliz, sem violência, quando podíamos pedalar pelos bairros sem preocupações. Os mais velhos, de quinze para dezesseis anos, comandavam todo o itinerário; os menores obedeciam sem questionamentos, a não ser no dia que disseram não querer mais meninas nas pedaladas.
Como assim? Eu fazia parte do grupo, pedalava junto com meu irmão e fiquei muito chateada! Mas, sabida como sou, desvendei o mistério! Sim, e por um detalhe… Aliás os detalhes são as peças chaves mais importantes numa história.
Não viram Shakira? Descobriu a traição do então marido por causa de um pote de geleia! Pois bem, o meu pote de geleia foi perceber o cuidado exagerado dos meninos com o banho, coisa que faziam praticamente obrigados. Dias depois, eu ouvi um zum zum zum… Até então eu imaginava que tamanho asseio fosse por causa de alguma paquera ou porque resolveram se juntar a uma turma de ciclistas só de meninas.
A “zona de perigo”
Sim, era comum o clube dos Bolinhas e das Luluzinhas, algo altamente sexista, mas perdoável naquele tempo. Mas aí ouvi meu irmão falando ao telefone com um amigo a respeito de uma construção, num local que eles chamavam de “zona de perigo”, que por óbvio não tinha nada a ver com o hit de Leo Santana. Achei tudo esquisitíssimo e fiquei antenada para estar lá no dia e hora combinados mas, ansiosa, fui antes conferir.
Era uma obra grande, que segundo soube, seria a construção de um Centro Espírita. Não entendi o porquê dos meninos se encontrarem ali, um local cheio de tijolos e metralhas, que poderiam até furar o pneu das bicicletas. Voltei para casa com a pulga atrás da orelha e aguardei o sábado, final da tarde. Inventei uma desculpa para sair e cheguei na obra muito antes deles, mas não havia ninguém. Até que ouvi uma voz grossa, de homem, que parecia brabo:
- Madu, vai se arrumar. Os meninos já estão chegando!
- Mas papai, hoje eu queria …
- Você não tem querer, retrucou o pai, dando por encerrado o assunto.
O rapaz do Fiat 147
De relance pude ver a silhueta de Madu; era uma mocinha muito franzina de cabelos escuros. Ela passou bem perto de onde eu estava e pareceu-me chateada. Vestia um short curtíssimo e um top, o que a tornava ainda mais magra. Um Fiat 147 chegou ao local, o que a fez correr em direção a um quadrado de madeira no fundo da obra, que pelo que entendi, era a casinha do vigia, seu pai.
O rapaz do Fiat era amigo do meu irmão; ele tinha apenas dezesseis anos, mas já ganhara um carro dos pais. Madu saiu da edicula de banho tomado, com um vestidinho florido, meio transparente e entrou no carro. O pai dela recebeu algo do rapaz, mas eu, inocente de tudo, não consegui entender aquela dinâmica… Enquanto estava perdida, ligando os pontos, alguns meninos chegaram com suas bicicletas. Vi que jogaram um dado no chão e decidiram quem seria o primeiro… Mas primeiro o quê?
A descoberta
O Fiat retornou algum tempo depois e Madu saiu do carro com a boca ” franzida”, uma caracteristica marcante no rosto dela. Os garotos, uns três, fizeram uma especie de fila e depois, um a um, entrou naquele barraco, saindo alguns minutos depois com uma espécie de sorriso, desses de satisfação, que eu só via quando eles comiam um cachorro quente com refrigerante. O menino que tinha sido o primeiro da fila, deixou sua bicicleta na obra e voltou na garupa de um deles. Estranho, pensei… Assim que todos foram embora, vi quando Madu saiu alegremente para dar umas pedaladas na bicicleta que ficara por lá. Ela passou bem próximo a mim, sem sequer desconfiar que eu estava dando uma de detetive. E foi quando eu vi o porquê da boca franzida: Madu era totalmente banguela!
O boi de Madu
Voltei para casa intrigadíssima. Nos dias seguintes apurei mais ainda os meus ouvidos, mas não ouvi uma conversa sequer sobre Madu. Todas as vezes que os meninos saíam pedalando, eu seguia direto para a obra, mas eles não estavam lá. Passei uma semana nessa lenga-lenga e nada… Até que:
- Acho que hoje dá certo. Já faz mais de uma semana…
- E se ela ainda estiver ” de boi”?
- Pois é… Dizem que mulher “de boi” não pode andar de bicicleta, senão fura os pneus!
- Nos livros está escrito que dura de cinco a oito dias…
- Melhor esperar mais um pouco para a gente não correr risco!
Eu não sabia o que era o tal ” boi” que os meninos falavam, mas devia ser algo muito violento, ao ponto de furar os pneus da bicicleta. Tive receio de perguntar e levantar suspeitas, mas intrigada mesmo eu fiquei quando ouvi eles falando em “sexo oral”. Eu, que era a ingenuidade em pessoa, achei que sexo oral fosse falar palavrão e não entendi o porquê de elogiar o “oral” de Madu. Talvez fosse porque ela só falava palavras bobinhas, tipo “merda”, muito embora nem isso eu pudesse dizer, senão levava uma chinelada dos meus pais. Sim, naquela época a meninada apanhava com o que estivesse à mão: cinto, chinelo, tamanco e até espanador!
O caso com o Galeguinho
A construção do Centro Espírita foi concluída meses depois, o que provocou uma tristeza geral nos meninos, embora rapidamente já estivessem sendo consolados pelas namoradinhas. A diversão deles deixou de ser a pedalada para idas ao cinema, época que muitos falsificavam as carteiras para assistir filmes para maiores de dezoito anos. E foi num sábado à noite, quando foram ao Cine Rio Grande, que viram Madu aos beijos com um menino da turma. Era um galeguinho, cujos avós moravam perto do Centro Espirita. Souberam que ele era assíduo frequentador do local e, daquele dia em diante, a turma começou a “tirar onda” com o colega, pois sabiam que ele estava “caidinho” por Madu.
Janeiro de 1981
A cidade estava praticamente deserta enquanto as praias de veraneio super lotadas. A maioria da turma de 1980 passou no vestibular e foi aquela festança! Os novos universitários que ostentavam com orgulho suas carecas, acertaram previamente as datas das comemorações, pois desse modo os amigos poderiam participar de todas as festas. O galeguinho, aquele do cinema, entrou para o curso de Medicina, fato que o fez desligar- se de Madu, mas não por desejo próprio, mas por contingência da vida. Ele tinha aula o dia todo e com tamanha carga horária, não tinha tempo nem para se coçar! Especializou-se em ginecologia e obstetrícia e logo depois passou no concurso para trabalhar no Hospital da Polícia Militar, tornando-se um dos médicos mais conceituados da cidade.
E foi lá, naquele hospital, quando estava em um plantão, que atendeu uma parturiente, que lhe pareceu familiar. Nervoso, fez a anamnese, mas arranjou uma desculpa qualquer, e repassou a paciente para uma colega. Ele já estava noutra fase da vida e não queria reviver um sentimento que marcara sua adolescência. Madu também não teceu comentário algum. Apesar de saber que o amor que fica…
A guinada de Madu
Ela tinha encontrado um homem de bom coração, que lhe tirara “da vida”. Ele era um ex-seminarista, da mesma turma dos “meninos”, que em princípio pretendia seguir com a orientação religiosa, mas sucumbiu diante da situação de Madu. De cara ele viu que ela era uma pessoa boa, mas muito sofrida pelos anos que passou sendo explorada pelo pai. E, empenhado em dar-lhe um futuro melhor, arranjou-lhe um emprego de carteira assinada na casa do tio, lugar onde morava. E assim, com a proximidade, ele acabou se apaixonando e desistindo do “projeto batina”. Na verdade, esse projeto era da sua mãe, que tinha o sonho de ter um filho padre.
O casamento de Madu
O ex-seminarista prestou vestibular para Odontologia. A comemoração foi íntima; nem ele convidou os colegas da turma, nem muito menos fora convidado para nenhuma das festas. Ele não se incomodou com isso, pois nunca fizera parte de grupinhos. Passou despercebido todo o segundo grau, era um ser praticamente invisível. A mudança de comportamento veio na faculdade, quando feliz por suas novas decisões, destacou-se na turma, tornando-se um dos melhores alunos, fato que fez com que conseguisse facilmente estágios nos consultórios dos seus professores. Especializou-se em próteses e implantes dentários, sendo seu mais primoroso trabalho realizado na boca de sua amada, que não cabia em si com tamanha felicidade. Ele aproveitou o entusiasmo de Madu e fez o pedido de casamento:
- Madu, eu cheguei tarde para ser seu primeiro amor, mas deixe-me ser o último!
E Madu disse sim!
Voltando para novembro de 2025
A festa terminou para Madu antes da hora prevista. Os olhares dos “meninos” incomodaram bastante seu marido, embora ele soubesse o risco que corria quando decidiu ir. No fundo ele sempre soube que, para Madu, ele não passava do capitulo de um livro, enquanto para ele, ela era o próprio livro. A verdade que ele não queria enxergar era que Madu nunca esquecera o “galeguinho” mas, mesmo assim, fez questão de caprichar na harmonização facial da amada. Ele queria que todos os colegas ficassem com inveja, que vissem que ele se dera bem! Pobre coitado… Não aguentou a pressão! Descobriu da pior forma que o amor que fica… É amor de… ( completem a frase!)
Ana Madalena