O destaque de hoje aqui na coluna CRÔNICAS é mais um maravilhoso conto da nossa queridíssima Ana Madalena. Que contribui mais uma vez com a nossa modesta coluna, com uma crônica inigualável chamada “A nora”. Portanto não perca tempo! Assuma a sua condição de espalhado.
A nora
Não sei você, mas na casa dos meus pais, em dia que chegava visita, era como se fosse domingo.
Minha mãe servia salgados, refrigerante e sobremesa.
Eu adorava ficar escutando as conversas dos adultos e, por óbvio, beliscar uma coisinha aqui outra ali.
Já na pré-adolescencia, eu dei um passo maior; milagrosamente eu fiquei com a voz igual a da minha mãe e todas as amigas dela, quando telefonavam, geralmente nos confundiam.
E eu, que não era boba nem nada, ficava de papo, escutando o que elas tinham para falar (e sempre era muito assunto) e quando eu cansava, dizia que ia chamar a minha mãe.
As amigas riam:
-Menina, você enganou direitinho!
Com o tempo, escutando atenta às conversas, peguei até o jeito e as expressões que elas diziam, aprimorando minha “técnica”.
Nunca imaginei que um dia pudesse usar esse conhecimento a meu favor.
Eu acho que fui uma criança que não gostou de ser criança.
Toda a minha infância eu sempre quis ficar rodeada de adultos, de longe um “pessoal” muito mais interessante do que uma porção de pirralhos, que ficavam correndo e jogando queimada!
Meus irmãos eram um grude, brincavam juntos de um tudo, em compensação viviam pegando piolhos.
Sim, porque criança pega piolhos num piscar de olhos!
Eu não chegava nem perto deles; preferia ficar na tranquilidade do meu quarto, lendo romances, de longe um lazer bem mais tranquilo e enriquecedor.
Minha mãe dizia que eu era implicante e do contra, até admito que possa ter sido um pouco disso! Só um pouco.
Eu tinha um sonho: crescer para ficar mocinha.
No colégio, eu olhava para as moças do “ensino médio” e pensava: um dia serei alta e terei peitos iguais aos delas, usarei batom e sandálias com saltos altos!
Algumas até fumavam, e eu achava aquele ritual de aspirar e soltar fumaça uma coisa fantástica.
Nada como o tempo para apagar certas ideias de jerico.
Na hora do recreio eu costumava sentar perto de um grupinho de moças, só para ouvir as conversas, que geralmente eram sobre rapazes.
Eu ainda não tinha despertado esse lado romântico e ficava impressionada quando via algumas delas falando em paixão, quase aos prantos.
Que horror! Tanto drama por causa de um rapaz?
Pior que escutar aquelas baboseiras, era vê-las, na saída do colégio, aos beijos, em pleno sol do meio dia. Eles suados, os cabelos pregando na testa, as espinhas reluzindo… Eca!
Um dia minha mãe disse que eu me arrumasse, pois tinha sido convidada para ir à casa de uma amiga de trabalho.
Era aniversário do filho dela e haveria um lanche para as crianças.
A menção da palavra “criança” quase me fez desistir de ir ao tal aniversário; eu não tinha paciência para ficar brincando de cobra cega e corrida de saco.
Toda festa era a mesma coisa!
Eu terminava sempre sentada ao lado da minha mãe, só para ouvir aquela troca entre as mulheres, embora a conversa não fosse tão animadora.
Elas reclamavam da trabalheira das crianças, da lida com a casa, da tripla jornada de trabalho.
Eu dizia a mim mesma que só ficaria com a parte boa de crescer…
Nem pensar em casar, ter filhos e ficar arrumando casa. Meu sonho era ser aeromoça, viver arrumada e conhecer o mundo, ir a lugares que só conhecia pelos livros!
– Está na hora do parabéns! Todos para a mesa do bolo.
Um intervalo na narrativa: eu passei anos da minha vida detestando aniversários.
Não sei de onde veio a implicância, até porque na infância meus pais fizeram festas lindas, de encher os olhos.
Acho que eu simplesmente não achava graça em ter que ficar em frente a um bolo, cantando uma musiquinha enjoada, e ainda ter que soprar velas.
Para quê? Revendo as fotos dos meus aniversários, não foi difícil imaginar o porquê de eu estar sempre olhando para o teto.
Voltando a festinha:
O aniversariante ainda não tinha dado o ar da graça.
Soube depois que ele também não gostava de aniversários, muito menos completando catorze anos, já praticamente um adulto ( pelo menos naquela época, quando aos dezoito já tínhamos responsabilidades.
Hoje a adolescência dura uma eternidade… )
Ele, totalmente sem graça, participou do ritual do parabéns, mas não olhou para cima como eu.
Ficou olhando de um lado para outro, talvez procurando por uma tábua de salvação.
E foi numa dessas passadas de olhos que os nossos se encontraram…
Sim, senhoras e senhores, nossos olhos se encontraram e ficamos meio esquisitos, tentando desviar o olhar, num misto de vergonha e descoberta.
Estávamos nesse magnetismo quando ele soprou a velinha.
Depois, ele sumiu e eu fiquei sentindo uma coisa estranha.
Os dias se passaram e eu fui ficando cada vez mais quieta, diria até que triste.
Não conseguia esquecer o aniversariante, que soube depois chamar-se Pedro.
Meus cadernos eram cheios de corações com nossos nomes dentro:
Pedro e Ana. Estava exatamente desenhando um coração quando o telefone tocou; eu sai correndo para atender, que era uma das minhas obrigações de casa.
Função que eu exercia com muita cautela, desde o dia que minha irmã mais nova atendeu e a pessoa do outro lado da linha perguntou:
– Alô, quem está no aparelho?
Ela, ingênua, entrou no banheiro, causando espanto em quem estava no “trono.
E quando explicou o porquê de estar ali, foi imediatamente proibida de atender qualquer ligação.
E eu assumi a função de telefonista, para mim um feito e tanto.
Adorava dizer: aqui é da residencial dos Albuquerques!
O nosso telefone ficava na parede, no hall de acesso aos quartos.
O fio era enorme e dava para eu andar pela sala, deitar no sofá, ir a cozinha, tomar água, mas quando queria falar algum segredo, eu entrava no lavabo, que ficava exatamente na porta ao lado do telefone.
E foi exatamente o que fiz quando D. Carmem, mãe de Pedro ligou.
Para variar, ela confundiu a voz; ficou conversando comigo pensando ser minha mãe.
E foi quando eu tive a brilhante ideia…
– Carmem, querida ( minha mãe sempre tratava as amigas chamando-as de querida), vou fazer um lanche no fim da tarde do próximo sábado.
Gostaria que você viesse com as crianças.
– É aniversário de algum dos seus filhos?
– Não, é só porque as crianças vão entrar em férias e seria bom ver os amiguinhos.
– Ah, ótimo! Iremos com prazer!
– Que bom, minha querida! Diga a Pedrinho, que mesmo ele sendo mais velho do que meus filhos, que venha também.
Desliguei o telefone com o coração batendo tanto que se soubesse à época o que era infartar, acharia que estava tendo um infarto.
A coisa só piorou quando, do quarto, minha mãe perguntou de quem era a ligação.
Imediatamente disse que era engano, mas foi quando me dei conta que eu estava com um problemão.
Como é que ia ser quando D. Carmem chegasse sábado e minha mãe ficasse sem entender o motivo da visita?
A primeira coisa que eu tinha que pensar era em relação ao que servir.
Minha mãe ficaria chateada em não ter nada especial, nem um refrigerante.
O jeito foi eu quebrar meu porquinho e comprar eu mesma os refrigerantes.
Mas, e para comer? Lembrei que sempre que ficávamos doentes minha mãe fazia o nosso bolo favorito; resolvi ficar doente numa quinta-feira e piorar bastante na sexta.
Como que advinhando meus pensamentos, minha mãe acordou cedo no sábado e bateu um bolo.
Do meu quarto eu ouvi a batedeira.
Minha expectativa ficava maior a medida que o fim da tarde se aproximava.
Por volta das 16.30h meus pais e irmãos começaram a se arrumar para ir à missa; minha mãe disse que eu poderia ficar em casa para não piorar, mas insisti que estava melhor, que queria ir.
Qual a desculpa que daria para botar meu vestido de domingo?
E foi quando estava penteando meus cabelos que as visitas chegaram.
Minha mãe, surpresa, recebeu sua amiga e mesmo sem entender nada, ficou super feliz!
Do meu quarto, escutei a voz de Pedro, quando disse que não queria jogar memória com os irmãos.
Um parêntesis: era comum, quando íamos a casa de amigos dos meus pais, que levássemos jogos de tabuleiro para brincar com os filhos deles, pois algumas das crianças sequer conhecíamos.
Eu nunca participava desse momento, para desespero da minha mãe. E pareceu que Pedro também não.
Apareci na sala com o meu melhor sorriso.
D. Carmem elogiou meu vestido, pegou minha bochecha ( odiava quem fazia isso, mas naquele momento fiz a “fina”) e disse que eu estava ficando uma mocinha linda.
Meu pai, que estava na varanda com o marido de D. Carmem, olhou para mim e piscando o olho, falou:
– Aninha é uma princesa!
Eu fiz o tipo envergonhada, baixei a cabeça e tentei um certo rubor.
Minha mãe, sabendo que eu não gostava de brincar com as crianças, me puxou num canto e disse:
– Filha, faça companhia a Pedro, sei que voce não tolera os papos dos meninos, mas é o jeito.
Por sorte, seu pai deve ter comprado refrigerantes e tem o bolo que fiz pra você. Já pensou não ter o que servir às visitas?
Eu, quase explodindo de rir por dentro, fiz cara de contrariada e respondi:
-Tá bom, mãe, mas não me peça mais isso. Preferia ir para a missa…
Minha mãe, compadecida, deu um beijo na minha testa e agradeceu.
– Você é uma boa menina!
Chamei Pedro para ir para o jardim. Ele, meio sem graça, pediu licença aos adultos. Ainda pude ouvir quando D. Carmem disse:
– Eles são uma gracinha juntos…
Mentalmente eu agradeci à minha futura sogra. Nessa hora Pedro perguntou se eu gostava de ler e eu, imediatamente respondi:
– Você está perguntando a um macaco se ele gosta de banana!
Para minha sorte ele riu, disse que eu tinha um jeito engraçado e que preferia estar comigo do que brincando com os irmãos.
E foi assim que começou nossa história. Por sorte, D. Carmem nunca mencionou o telefonema, nem minha mãe perguntou sobre os refrigerantes a meu pai. E o bolo salvou a noite!
-Filha, não quero parecer rude, mas você ter ficado doente foi providencial…
E eu, sonsa como nunca, respondi:
– Nem me fale mãe… Alguns males vêm para o bem!
Só para constar, eu e Pedro ficamos grandes amigos; o que nos uniu foi o gosto pela leitura.
Até que tentamos namorar, mas morremos de rir diante dessa possibilidade.
D. Carmem até hoje não se conforma em não me ter como nora! Como na vida nada é definitivo, quem sabe um dia, não é mesmo?