Infância marginal: de Bolsonaro a Calligaris

Joga o ECA no lixo!

Em 2020, a Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná denunciou ao Ministério Público possíveis crimes contra crianças e adolescentes cometidos pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro. Ainda em 2019, ele havia dito que “não apresentaria projeto para descriminalizar o trabalho infantil”, afirmando que “o trabalho enobrece todo mundo e se aprende a dar valor ao dinheiro desde cedo quando se trabalha”. Quando ainda candidato, em 2018, ao defender o uso de arma de fogo para crianças, Bolsonaro afirmou: “… o ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”.

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é um guia sobre os deveres dos pais, responsáveis, bem como do Estado para com os jovens, criado em 1990 para atender a uma exigência da Constituição de 1988. Veja o que diz o artigo 3°:

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (…) assegurando-se-lhes (…) todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade.

A partir do ECA, o Ministério da Saúde criou a Caderneta da Criança – Passaporte da Cidadania:

um livrete que a criança recebe no momento da alta hospitalar e é utilizado pelas famílias e profissionais de saúde, com o objetivo de acompanhar a saúde, o crescimento e o desenvolvimento da criança, do nascimento até os 9 anos, bem como a situação vacinal na infância, entre outros cuidados fundamentais para a atenção integral e proteção da saúde da criança.

A Caderneta da Criança está disponível nas versões menino e menina e também pode ser acessada no site do Ministério da Saúde. Além de tratar da saúde biológica, esse documento fornece informações pedagógicas essenciais para um desenvolvimento infantil seguro. É um manual de como ser pai e mãe, de uma maneira genérica. Algo que, talvez, devêssemos receber antes mesmo de decidirmos gerar uma criança, para que possamos entender melhor o tamanho da responsabilidade que é criar e educar um indivíduo.

Redução de custos

Instituído como uma premissa do ECA, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) está ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, com gestão compartilhada entre o Poder Executivo e entidades civis associadas à promoção dos direitos à infância e à adolescência. Em 2019,

o governo federal deixou de financiar o deslocamento de conselheiras e conselheiros que residem em outras regiões do país para participarem das reuniões mensais em Brasília.

Além disso, o governo Bolsonaro “exonerou conselheiros e reduziu a participação social no Conanda”. O número de participantes saiu de 28 para 18. É o que diz a matéria da Brasil de Fato.

Bom, conhecendo um pouco do ex-presidente, suponho que escolheu as causas em que menos acreditava para enxugar o orçamento. Mas em que ponto decisões como essas, provavelmente, isentas de estudo de causa, cruzam questões como benefício econômico e estrutura adequada?

Como surge o sentimento de infância?

A definição de infância sempre mudou ao longo do tempo. Inclusive, em épocas de elevadas taxas de mortalidade, não havia sequer a “consciência da particularidade infantil. Tampouco havia as ideias de inocência e candura…”. As representações pictóricas de crianças se iniciam com o menino Jesus no século XII e se intensificam entre os séculos XIII e XIV, progredindo para uma consciência coletiva de “sentimento de infância”. Conforme relata Ana Laura Prates em seu ‘Da fantasia de infância ao infantil na fantasia’:

Surgem as histórias de crianças nas lendas e contos, apontando para o início de uma lenta transição quanto à indiferença medieval frente à criança. É, sobretudo a partir dos séculos XV e XVI, entretanto, que começam a aparecer mais representações de crianças em cenas sociais.

Para melhor explicar a evolução da infância na sociedade dos próximos séculos até a atualidade, Prates cita o historiador francês Philippe Ariès (1978):

A família começou então a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância, que a criança saiu de seu antigo anonimato, que ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes, o que se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela.

Controle e vigilância a quase todo custo

Finalmente, na primeira metade do século XXI, vemos no Brasil crianças nunca antes tão protegidas. Talvez, até superprotegidas. Claro, falamos aqui das crianças da classe média em diante. Sempre elas. Afinal, como diria Jacques Donzelot em seu ‘A polícia das famílias’, de 1977, numa citação de Prates:

Em torno da criança, a família burguesa traça um cordão sanitário que delimita seu campo de desenvolvimento: no interior desse perímetro o desenvolvimento de seu corpo e de seu espírito será encorajado por todas as contribuições da psicopedagogia postas a seu serviço e controlado por uma vigilância discreta.

Em ‘Psicanálise com crianças’, Teresinha Costa reforça o retrato da infância do século XIX, assim como Donzelot, no século XX:

… a sexualidade infantil, longe de ser negada, revelava-se através das formas de controle e vigilância exercidas pelos adultos sobre a criança. A sexualidade infantil representava uma ameaça que precisava ser controlada pelo social.

Um retrato da infância do século XIX que se repete dois séculos depois. Um controle e uma vigilância que irradiam a partir da sexualidade, mas que não se criam em ambiente virtual. Um resultado da era digital em associação com a ideia de que “o adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das suas crianças” (citação de Contardo Calligaris). Aproveite para ler também Pais e filhos tentam sobreviver à era digital.

Infância marginal: o rei e o dejeto

Do outro lado, da família popular brasileira, altos índices de crianças em situação de rua são registrados. O site Lunetas expõe o seguinte:

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 apontam que, em 2020, foram 7.145 registros de abandono de incapaz com vítimas de 0 a 17 anos em todo o país. Já em 2021, o número saltou para 7.908, um crescimento de 11,1% nas taxas por 100 mil pessoas nesta faixa etária.

O psicanalista italiano, Contardo Calligaris, radicado em terra brasilis, conta as suas primeiras impressões sobre o brasileiro na obra ‘Hello, Brasil!’. Calligaris relata uma experiência num restaurante, onde testemunhou a típica, para nós, convocação “imperiosa” ao garçom, por parte de uma criança de seis ou sete anos: “Mooooooço!”. Afinal, quem de nós nunca testemunhou tal situação? Normal, né? Mas, para Calligaris, italiano e residente da França, da Suíça e dos Estados Unidos, tratava-se de uma situação incômoda.

Acredito que o que me incomodava deva ter alguma relação com o exército de crianças ditas abandonadas na rua. Pois é estranho, afinal, que a criança no Brasil seja rei e ao mesmo tempo dejeto.

Para ele, a proporção da criminalidade de menores, aqui, era inédita, bem como a existência de punições diferenciadas à menoridade.

… acabei também estranhando a impunidade que o Código Penal reserva ao crime cometido por eles. Mas estranhei por estranhar, pois não há nisso nada de especial, e não conheço código que preveja uma responsabilidade penal para menores.

Uma impossibilidade estrutural?

Calligaris acreditava que a sociedade brasileira não sabe reprimir os menores, sugerindo que se trate de uma impossibilidade estrutural e complementa: “quem não sabe reprimir também não consegue reconhecer um lugar e uma dignidade simbólicos”.       

Se as crianças e os adolescentes fossem cidadãos, seria possível considerá-los deveras responsáveis e puni-los quando fosse preciso e da forma adequada, conforme a lei. Suspeito que a impunidade das crianças (criminosas ou não) revele que elas não são no Brasil verdadeiros sujeitos de direito.

Calligaris estratifica socialmente os jovens modernos em três grupos: o grupo dos filhos dos excluídos sociais, que “veem na exclusão de seus pais o fracasso da comunidade” e se resume em “não reconheço a lei, mas tenho que ser feliz; então vale tudo”; o grupo dos filhos da classe média, que “verifica em seus pais um desprezo cínico pela comunidade” e se resume em “a ascensão social está acima da lei e tenho que ser feliz; então vale quase tudo”; e o grupo dos filhos das elites, convictos “de que seus pais – e sua classe – seriam os únicos arbitrários donos da lei” e, portanto, se resume a “então, vale tudo mesmo”.

Para Calligaris, a marginalidade está presente em todas as camadas sociais, pois, no Brasil, não reconhecemos a lei e sempre queremos gozar das benesses da vida para além da lei. E ele deixa uma questão muito importante:

A marginalidade generalizada e ainda mais a criminalidade são assim apresentadas como o preço que pagamos por nossa esperança. Se esperamos gozar sem lei, como a lei protegeria o nosso direito de gozar?

As brigas que compramos e perpetuamos

O ex-presidente, ao diminuir a importância do ECA e do Conanda, pensa a marginalidade como algo que acomete apenas o pobre, mas propõe uma solução a partir da sua experiência com a infância de sua própria classe social. Diferente do que é defendido por Bolsonaro, Calligaris sugere que a marginalidade em geral no Brasil se inicia com a forma como as classes mais altas da sociedade brasileira tratam as suas crianças: como reis. Impunes. Não-cidadãos. Não-sujeitos. Não-responsáveis. São essas mesmas pessoas que criam e revisam as leis, que, por não saberem como punir os seus, não sabem como punir os dos outros. Portanto, quando pensam a marginalidade associada ao pobre, uma realidade diferente da sua, acabam fazendo uma outra interpretação da infância, ou seja: não-cidadãos, não-sujeitos, igual a dejetos.

No Brasil, os estatutos, os conselhos e o Código Penal especial para menores vêm justamente para tamponar a ausência dos pais dessas crianças, que, em vez de protegê-las e puni-las quando necessário, abandonam-nas. Como a dejetos. Já, a classe média, apesar de não punir, protege. E enquanto os direitos humanos brigam para proteger tardiamente os menores abandonados, as classes mais altas brigam para que punam aqueles que não são seus. Afinal, os seus já estão protegidos pelo seu dinheiro e advogados. Então, a batalha segue infinitamente, sem estudo de causa e muito menos atuação na causa-raiz do problema, sem ganhos, apenas perdas. Perdas prematuras de vidas de ricos e de pobres.

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