O conto da mulher: perversão e empoderamento

O Conto da Aia

The Handmaid’s Tale é uma série de TV estreada em 2017 e baseada na obra de Margaret Atwood, ‘O Conto da Aia’. O livro foi lançado com sucesso em 1985. Apesar da tentativa de fazer do livro um longa-metragem aclamado por todo o mundo, ‘A Decadência de uma Espécie’ teve uma recepção pouco acalorada. As bilheterias dos cinemas, em 1990, não conseguiram recuperar nem metade do orçamento do filme. Veja o que diz Fronteiras do Pensamento:

…os estúdios não estavam receptivos a uma trama que projetava os EUA de um futuro próximo como uma violenta teocracia, com as mulheres no andar de baixo da sociedade cumprindo papéis de esposas recatadas, serviçais e escravas sexuais.

27 anos depois, a recepção da série produzida pela MGM foi completamente outra. No fervo da recém assumida posição de presidente dos Estados Unidos por Donald Trump, representante da ala conservadora e que mais tarde viria a se envolver num caso de assédio sexual.

Se os norte-americanos já são usualmente fascinados pelos cenários apocalípticos, essa proposta de distopia frente ao barulhento e odiado governo Trump era a cereja do bolo. A resposta não foi outra que a aclamação do público e os inúmeros acessos aos episódios da série.

Uma ficção especulativa?

Chamada de ficção especulativa pela própria autora, afirmando que a história poderia de fato acontecer na vida real, Atwood provoca “é um entretenimento ou uma profecia política?”.

Bom, não me surpreende que ‘A Decadência de uma Espécie’ tenha sido um tanto quanto decadente para os críticos do cinema. Claro que em 1990 tudo era muito mais velado do que em 2017. Mas, de fato, a proposta de retroceder o papel da mulher na sociedade a tempos tão remotos – o que pode ser observado em obras como ‘A Criação do Patriarcado’ de Gerda Lerner – parece não somente estarrecedora como absurda.

Desde o primeiro episódio, a série me incomodava de alguma forma. Não entendia por quê. Apesar das cenas de extrema violência tenderem a suscitar o horror e a comoção no expectador, não era assim que me sentia. Na verdade, eu não parava de pensar por que, depois de tanta mudança, alguém proporia tal retorno. Algo tão brutal e que, talvez, diga respeito somente àquelas sociedades da antiguidade.

As transformações deixam marcas

Não quero dizer que não haja mais machismo, discriminação entre gêneros ou que não exista mais conservação de hábitos ou pensamentos por gênero. Quem lê os meus textos, bem sabe que não se trata disso. Tudo isso ainda existe, de fato. Mas o mundo já não é mais o mesmo. Nessa luta do “empoderamento” da mulher, os entornos também vieram se transformando: a estrutura dos relacionamentos e das famílias, as hierarquias em empresas, a representação do povo, a forma de lidar com o trabalho, de morar, de gerar, de consumir, de se expressar.

Para Atwood, até 1985, o mundo era muito diferente do que é hoje, embora persistam o puritanismo nos EUA e a república islâmica teocrática em diversos países do oriente, por exemplo – inspirações da autora. Apesar de, no fundo, existir ainda um pouco de puritanismo em cada um de nós, a ala radical hoje é muito pequena. O que não quer dizer que ela não possa crescer. Na verdade, a priori, é uma tendência, já que a maioria não quer mais ter filhos ou tem poucos. Os radicais nunca pararam de procriar e é bem possível que um dia, ainda num futuro muito distante, tornem-se maioria novamente.

Mas, mesmo que isso se concretize, já teremos passado por mais tantas mudanças, que esse nível de submissão proposto por Atwood não estaria mais sequer no campo de visão. A cultura do islã só é possível para aqueles que sempre viveram no islã. Quando vivemos diferentes realidades, nos transformamos de alguma maneira. Mesmo que voltemos às nossas origens, elas já não serão vistas mais da mesma forma.

As crenças religiosas

Claro, podemos pensar nos inúmeros cultos, que, inclusive, os Estados Unidos são especialistas em transformar em filmes ou documentários. Situações em que pessoas deixam os seus lares, cortando relações com família e amigos, para servir um dito profeta. Apesar de ser uma ação relativamente frequente, os motivos e as seitas são diversos. Com diferentes regras e propostas. E, justamente, porque hoje temos acesso e direito a tantas possibilidades.

Enquanto a igreja católica se dividiu entre romanos e ortodoxos, o protestantismo se dividiu em três vertentes: “os protestantes históricos (calvinistas, luteranos, anglicanos etc.), os pentecostais e os neopentecostais”.  

No Brasil, os protestantes históricos incluem as igrejas Luterana, Batista, Presbiteriana, Metodista, Episcopal, entre outras.
O segundo grupo (pentecostal) tem entre seus integrantes Assembleia de Deus, Deus é Amor, Evangelho Quadrangular e Congregação Cristã do Brasil.
O terceiro grupo (neopentecostal), uma subdivisão dos pentecostais, inclui denominações como Renascer em Cristo, Igreja Universal do Reino de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Internacional da Graça de Deus e Igreja Mundial do Poder de Deus.

Agora, eleve isso a nível mundial! Ou seja, as variações são enormes, pois cada igreja possui as suas regras e exceções particulares. Algumas vão admitir mulheres pastoras, outras, não. Da mesma forma, o rito romano do catolicismo se subdivide em 24 igrejas entre o ocidente e o oriente, dentro das tradições alexandrina, bizantina, armênia, maronita, siríaca ocidental e siríaca oriental. Inclusive, em 2021, 100 igrejas católicas na Alemanha “passaram a oferecer bênção a casais homossexuais”, depois da fala confusa do Papa Francisco sobre abençoar, mas não admitir o casamento gay. E ainda, em 2023, a Igreja Católica alemã aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o diaconato para mulheres, mesmo sem a permissão do Vaticano.  

As transformações nas igrejas refletem a mudança do povo

A assembleia “Caminho Sinodal” da Alemanha se formou em 2019, “em resposta aos escândalos de abuso sexual clerical”, com uma proposta de renovação.

Embora a Igreja Católica da Alemanha continue sendo a maior religião do país, contando com quase 22 milhões de membros em 2021, a entidade perdeu cerca de três milhões na última década em resposta aos escândalos de abusos sexuais.

Não só a Alemanha, mas muitos outros países têm revelado os casos chocantes de abuso em massa por parte dos clérigos da Igreja Católica. Veja o que diz O Globo:

Um estudo encomendado pela Conferência Episcopal Alemã e divulgado em 2018 mostrou que 1670 clérigos cometeram algum tipo de ataque sexual contra 3677 menores, a maioria meninos, entre 1946 e 2014. No entanto, os autores disseram que o número real de vítimas foi “quase certamente” muito maior. A presidente do Conselho Central dos Católicos Alemães, Irme Stetter-Karp, disse que “desejava mais” mudanças após a assembleia de Frankfurt”.

E é isso que as pessoas procuram, hoje: mudança. Não somente porque é possível, como as alternativas são infinitas. E é por isso que “a cada 100 evangélicos no Brasil, 44 são ex-católicos”. E sabe-se lá quantos passaram por quantas igrejas, na tentativa de se identificarem com alguma. Hoje, a complexidade psíquica é tamanha e não há mais espaço para o simples. Por mais que, de vez em quando, busquemos a simplicidade, o retorno ao familiar, ao que já foi vivido, nós já carregamos o futuro e já somos influenciados por ele.

As dificuldades das seitas

The Handmaid’s Tale propõe a probabilidade de retorno a algo tão simplório, tão raso, que não é mais compatível com a raça humana da atual civilização. A série nos incita um terror cuja referência, no mundo ocidental e em tempos mais modernos, custo a buscar e, então, me deparo com a Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, de Warren Jeffs.

Também transformada em série de TV, ‘Rezar e Obedecer’, a seita, cujo profeta era Jeffs, envolvia o casamento poligâmico, onde mulheres eram estupradas e engravidadas, inclusive, meninas menores de idade. Tudo em prol da religião, semelhante ao que acontece em ‘O Conto da Aia’. A investigação policial no rancho da seita é realizada em 2008. Ou seja, trata-se de um caso relativamente atual. No entanto, diferente de The Handmaid’s Tale, todos os membros da seita foram criados dentro da crença religiosa. Inclusive, muitas meninas sequer conheciam o mundo fora de sua comunidade ou do rancho, sendo aquela a única realidade para elas. Mesmo assim, um sentimento de injustiça se apresentava para algumas, que conseguiram fugir e denunciaram Jeffs.

Seitas como essas existem diversas pelo mundo. Mas, sempre com particularidades, que não as fazem uma só. E já não conseguem mais representar uma maioria, nem mesmo uma porção significativa da civilização. Isso porque, além das mulheres representarem mais da metade da população, o movimento feminista gera desafios aos homens, fazendo-os se depararem com a sua própria fragilidade, como vimos no texto da semana passada, Silent Men: do suicídio ao desenlace social.

Perversão e desserviço

Fora os diversos furos que The Handmaid’s Tale possui, talvez, pela repercussão que teve e pela necessidade de se prolongar a sua história, penso que a série faz um desserviço à humanidade, ao propor tamanha perversidade, desconsiderando a história da civilização e a transformação da psique humana. Não se engane. Não é que a perversão não exista, mas, hoje, no contexto geral, ela existe num outro nível. O fato é que os Estados Unidos têm duas mulheres cotadas à presidência nas eleições deste ano, sendo uma delas, Michele Obama, a única pessoa que, segundo as especulações, colocaria em risco a reeleição do conservador Trump.

As produções artísticas normalmente são baseadas numa realidade e, quando tentam projetá-la no futuro, elas seguem tendências que respeitam as aquisições do conhecimento ao longo dos anos. Livros, filmes, séries e novelas são produtos que compramos, não apenas no sentido literal da palavra, e que, portanto, acabam nos modelando de certa forma. Afinal, livros, filmes, séries e novelas são manifestações de longo alcance.

A história da escravização das mulheres, que seguiu para o machismo, é algo muito sério e que gera sintomas até os dias atuais. Mulheres que têm medo de andar sozinhas nas ruas, mesmo em cidades pequenas e pacíficas, mulheres que têm medo de dirigir, que se submetem a casamentos infelizes e tantas vezes violentos, geralmente, em troca de um falso sentimento de proteção. E tantas outras mulheres.

Apresentando-se como uma crítica, mas numa tentativa desesperada de incluir sucessivas cenas violentas, sem sequer atender a uma linha lógica, séries como The Handmaid’s Tale, especialmente quando a autora afirma que poderia se tornar realidade, reforçam a ideia de que a mulher está fadada a um único destino. Reforçam, portanto, os sintomas da atualidade e as suas políticas de vitimização.

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