As guerras geram órfãos
As notícias de crianças órfãs durante as últimas guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza vêm comovendo as nações e causando fervorosas discussões em diferentes partes, embora o assunto não seja novidade em diversas outras localidades do mundo por anos a fio.
O Movimento Ashinaga é uma organização japonesa sem fins lucrativos que prevê educar e apoiar estudantes órfãos em todo o mundo. Eles apontam que “a África Subsaariana tem a maior proporção de crianças órfãs em todo o mundo, com mais de um em cada 10 jovens tendo perdido um ou ambos os pais.”. A Ashinaga apoia, hoje, 46 países da África Subsaariana, possuindo escritórios em Uganda e no Senegal, entre outros territórios pelo mundo.
As grandes guerras são, normalmente, as primeiras a nos darem notícias dos impressionantes números de órfãos resultantes delas. Assim foi com o Holocausto, por exemplo, que gerou órfãos alemães, enviados em seguida para a África do Sul. Segundo Sandrine Bessora, autora de “Os Órfãos”, “para irrigar com ‘sangue puro’ a sociedade separatista do país” durante o apartheid. Para maiores informações sobre, acesse matéria do Estado de Minas.
As problemáticas de uma África esquecida
No entanto, os conflitos internos, a violência e as doenças são elementos que contribuem constantemente para o crescimento do número de jovens abandonados.
Em 2011, o site das Nações Unidas publicou que das 16,6 milhões das crianças órfãs de pais infectados pelo vírus da Aids, 14,9 milhões vivem na África Subsaariana. Em 2000, um artigo da Folha de São Paulo revela que o continente chegou a registrar 60% das mortes a nível mundial.
Das 94 mil mortes em conflitos armados em todo o mundo no último ano, 56 mil, ou cerca de 60%, ocorreram na África negra. Dois terços do continente africano estão em guerra.
Há quatro anos, o site da RFI publicou Dos 10 conflitos mais preocupantes em 2020, três são na África: região do Sahel, que envolve Mali, Burkina Faso e Niger, além de Somalia e Etiópia. Mais recentemente, matéria da UOL mostrou que a África é “o continente com maior número de conflitos duradouros em todo o planeta”. E mais: “De um total de 54 países que compõem a África, 24 encontram-se atualmente em guerra civil ou em conflitos armados…”, sendo Congo, Ruanda e Darfur os países onde ocorreram os maiores massacres.
Em termos de refugiados, os países asiáticos Afeganistão e Iraque apresentam o maior número, precedidos da Somália e do Congo. Já, o “maior campo de refugiados no mundo fica no Quênia”.
A história da infância
Bom, tudo isso pra dizer que em diversos países, a infância, como nós entendemos que deve se cumprir, simplesmente não existe e, talvez, nunca tenha existido – pelo menos, para boa parte das gerações. Crianças privadas de itens básicos, como escola, alimento, cuidados pessoais, segurança.
Afinal, onde existe, a infância sempre foi assim como a entendemos?
Gerda Lerner traz em sua obra ‘A Criação do Patriarcado’ uma visão da infância que muitos denominariam perturbadora. Mas, para quem costuma ler livros e assistir filmes de época ou de escravidão, provavelmente, não seria uma grande surpresa.
Lerner reúne informações de historiadores para rever como se deu a construção da civilização. Desde a pré-história, com as sociedades de caçadores coletores, até o advento do capitalismo, e o papel da mulher durante essa transformação. Função esta necessariamente implicada a das crianças, afinal, explorava-se a sua capacidade de reproduzir cada vez mais escravos ou mão de obra.
Veja trecho do livro:
Durante um longo período, talvez séculos, enquanto homens inimigos eram mortos pelos captores, gravemente mutilados ou levados para áreas distantes e isoladas, mulheres e crianças tornavam-se prisioneiras e se incorporavam a casas e à sociedade dos captores.
Lerner cita Tucídides, em sua obra ‘História da Guerra do Peloponeso’:
Os atenienses reduziram os cioneus sitiando-os, mataram os homens adultos e fizeram mulheres e crianças de escravas…
Na China, “uma criança filha de uma pessoa livre com uma pessoa escrava era sempre considerada escrava.” Lerner ainda acrescenta que, segundo o historiador E. G. Pulleyblank, “Um escravo era um membro inferior da família de seu senhor e sujeito às mesmas obrigações […] que uma criança ou uma concubina”. Ou seja, aqui, ela introduz uma ideia do papel da criança não escrava na sociedade.
As vicissitudes da infância
Na obra de Ana Laura Prates, ‘Da fantasia de infância ao infantil na fantasia’, ela destaca que essa ideia da criança enquanto ser social só começa a se construir a partir da Idade Média.
A infância… era vista como um período de transição logo ultrapassado, não havendo, assim, a consciência da particularidade infantil. Tampouco havia as ideias de inocência e candura, posteriormente encontradas nas modernas fantasias de infância.
E cita, inclusive, que “Na Idade Média, era bastante comum os adultos tomarem liberdades com os órgãos sexuais das crianças”. Prates traz os estudos do historiador francês Phillipe Ariès, que atribuía essa ideia de “ausência de infância” ao alto índice de mortalidade “devido às precárias condições higiênicas e sanitárias”.
“O processo que Ariès denomina ‘descoberta da infância’ foi, portanto, bastante longo. Iniciou-se por volta do século XIII e pode ser acompanhado pelos séculos XV e XVI.”, que é quando, segundo Ariès, a mortalidade infantil começa a diminuir. Observa-se, inclusive, nesse período, “o aparecimento de nomes de crianças nas efígies funerárias, revelando um apego maior” a elas.
As concepções cristãs teriam contribuído para que a criança se transformasse em “um indivíduo possuidor de personalidade própria”, através, por exemplo, da ideia propagada da imortalidade da alma. Porém, com “uma razão ainda frágil”, a criança deveria ser submetida à instituição educacional, que até então se restringia à formação clerical.
…o início do surgimento deste “sentimento” deu-se exatamente na passagem do fim da Idade Média para o Renascimento, que corresponde a um grande movimento em direção ao que posteriormente seriam chamados “valores burgueses”… Neste sentido, pode-se constatar que a ideia moderna de infância é tributária da constelação familiar burguesa e do advento capitalista.
Fantasiando o infantil
Apesar da infância estar bem estabelecida em boa parte do mundo hoje, não significa que as crianças sejam tratadas da mesma forma nessa porção do globo. Contardo Calligaris, psicanalista e dramaturgo italiano, radicado em “terra brasilis”, investiga a cultura brasileira, trazendo seus estranhamentos, inclusive, em relação aos jovens, no seu livro ‘Hello, Brasil!’.
Já mencionado aqui no blog, em O jovem contemporâneo: um sujeito sem lei?, Calligaris mostra a sua indignação quanto ao comportamento das crianças de classe média no Brasil e observa que, aqui, existe um contraste curioso na forma como elas são tratadas: ou são majestades ou são dejetos.
O adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das suas crianças. Para ser breve: no Brasil, a criança é rei. Curioso, tanto mais em um país cuja reputação no estrangeiro está comprometida com legiões de crianças abandonadas na rua.
A grosso modo, a teoria que Calligaris constrói ao longo de sua obra é a de que tanto os colonizadores quanto os colonos no Brasil acabaram se decepcionando com o país, pois não teriam encontrado aqui o que vieram procurar. Esses pais, então, sonhariam para os seus filhos aquilo que não conquistaram, tornando-se, assim, permissivos.
O lugar de majestade que a criança parece ocupar talvez não indique uma excelência simbólica, mas algum tipo de incondicional exaltação fantasmática da criança. O que, aliás, explicaria por que, quando essa exaltação fantasmática não sustenta a criança, ela passe a ser simples dejeto. É como se a sociedade, em razão de sua impotência para garantir o paraíso a cada criança, devesse escolher deixar impunes as tentativas criminais das crianças para ter acesso, justamente, ao paraíso.
Narciso sobrevive
Bom, tudo isso pra dizer que as vicissitudes da infância se dão conforme as necessidades. Ou melhor, conforme os desejos do ser humano, independentemente da época, mas que sempre é sustentado pelo narcisismo. Seja por domínio de território, seja por mão de obra barata, seja pelo paraíso ou pelo poder.
Finalizo, aqui, com a citação de Ana Laura Prates, na obra já mencionada, à Neil Postman, no seu ‘O desaparecimento da infância’:
…uma cultura pode existir sem uma ideia social de infância. Passado o primeiro ano de vida, a infância é um artefato social, não uma categoria biológica. Nossos genes não contêm instruções claras sobre quem é e quem não é criança, e as leis de sobrevivência não exigem que se faça uma distinção entre o mundo adulto e o da criança.