Hiperexposição às telas: uma ameaça ao futuro?

Retrospectiva: internet nas telas

Chegamos ao último dia do ano e, fazendo uma retrospectiva, podemos dizer que o assunto mais proferido de 2024 aqui na coluna foi a era digital. Dessa maneira, eu não poderia deixar de trazer esse tema novamente como uma forma de enfatizar o tamanho do problema. A clínica atual se depara com esse grande obstáculo. A partir da geração Z, nascidos entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2010, a saúde mental vem sendo ameaçada por mais um agravante: as telas.

A National Geographic Brasil explica:

… a internet foi se popularizando e ganhando o mundo pouco a pouco no final da década de 1990, “explodindo” de vez a partir da década de 2000 em todos os lados, com a tecnologia online se desenvolvendo cada vez mais rápido e se expandindo para além dos computadores ao ganhar espaço em aparelhos diversos.

Cancelamento do futuro?

A revista Cult deste mês de dezembro, trouxe um dossiê de reportagens chamado “O lento cancelamento do futuro”. Esse cancelamento do futuro faz referência ao imediatismo que vivemos atualmente, onde tudo deve acontecer “aqui e agora”.

O psicanalista Marcelo Ricardo Pereira traz como referência ao seu artigo, ‘Como será viver sem futuro?’, a obra de Freud de 1930, ‘O mal-estar na civilização’. O que aparecia na sociedade da época como um empecilho à saúde mental eram as repressões. Hoje, são os excessos “de tecnologia, de virtualidade, de imagens, de violência, de segregação…”.

Os três registros da realidade humana

Lacan explica que nós estamos numa espécie de matriz composta pelo real, pelo simbólico e pelo imaginário. Então, é como se transitássemos pelos três registros simultaneamente, sendo possível estarmos ora mais imersos em um do que em outro. Hoje, com a hiperexposição às telas e, portanto, às imagens, “não são poucos os jovens que trocam sua capacidade de reflexão, de pensamento, de cifração do real pela inflação imagética, pela cultura de narcisismos e pela sociedade do espetáculo”.

A hiperexposição à violência e às perversidades, nas suas mais diferentes formas, apresenta um real com muitos furos, o vazio insuportável de uma vida precária. Assim, só nos resta fugir dessa realidade nua e crua. Ou seja, apesar de, com o tempo, o direito de gozo ter sido liberado, mais uma vez, ele não se regula, pois com o gozo, “também se liberam o ódio e suas formas mais arcaicas de segregação e de impulso de morte”.

A História tem mostrado que uma sociedade cujo gozo não se acha regulado é justamente uma sociedade mais angustiada, ansiosa, deprimida, como demonstra ser a nossa. No entanto, a torrente de imagens, virtualidade a e superficialidades que nos afoga pode servir para sedar nossa angústia difusa, isto é, o mal-estar na civilização pós-moderna.

Sedados…

Na clínica, vemos o quanto as telas podem dificultar os tratamentos, pois os algoritmos são desenvolvidos para subtrair do sujeito a sua própria subjetividade, transformando-o numa espécie de zumbi. O que pode impactar diretamente os seus hábitos de vida: alimentação, atividades físicas e de lazer. Afinal, aliado a isso, temos rotinas de trabalho que consomem a maior parte de nossa energia vital, reduzindo as chances de engajarmos em hábitos mais saudáveis ou em estilos de vida mais compatíveis com os nossos valores.

O bem-estar é um conjunto de fatores. E é importante lembrarmos que os psicotrópicos não são capazes de gerir disfunções hormonais ou subnutrições, por exemplo. Questões como essas acabam trazendo efeitos que podem se confundir com os sintomas-alvo de um tratamento psiquiátrico e se não forem detectadas, é provável que passemos toda uma vida tentando ajustar medicações. Afinal, por trabalhar com pólos (ansiedade-depressão), os ajustes dos psicotrópicos são muito finos.

A salvação não está mais no futuro?

E um ajuste depende do outro. Por isso pacientes não ajustados quimicamente tendem a não apresentar evoluções psicoterápicas. Eles acabam presos a eternos anos de medicação e de divã, tantas vezes, alternados a anos de automedicação (na dosagem que se quer ou sem dosagem alguma). E é claro que se tornam descrentes daquilo que um dia acharam que era sua salvação e que outro dia voltarão a achar o mesmo, porque é só isso que a medicina e a farmacologia oferecem hoje.

Nos últimos dias do ano, invariavelmente, pensamos no futuro. Se não num futuro distante, ao menos, no ano que está por vir. E pela ultima vez neste ano de 2024, tento provocar no leitor alguma reflexão… Afinal de contas, o futuro está de fato sendo cancelado? O que esperar do que não se espera mais?

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