E como fica o romance na era digital?

Exaustão emocional

Novamente, o amor. Todo ano, a mesma coisa. E pra quem está à procura, talvez, até todo dia seja a mesma coisa. Se voltamos à famosa série de TV, Sex and the City, vemos que Charlotte é exemplo da cansativa busca pelo par ideal. Cansaço este que já não é tolerado pelas gerações mais novas.  

Mais de 90% dos indivíduos da Geração Z — pessoas nascidas entre 1997 e 2012 — se sentem frustrados com aplicativos de namoro, de acordo com a agência de pesquisa Savanta.

De acordo com uma pesquisa de 2019 realizada pelo Pew Research Center, quase metade dos americanos com mais de 18 anos sente que ir a “dates” se tornou mais difícil na última década.

O artigo O que explica declínio dos apps de namoro? mostra que esses aplicativos ou estão perdendo consumidores ou, agora, têm um consumo mais lento. Ou seja, enquanto os “downloads do Tinder caíram mais de um terço em relação ao pico de 2014”, “um em cada três usuários do Bumble” (EUA) diz estar se expondo a menos encontros, no intuito de “priorizar a sua saúde mental”.

Então, como fica o romance?

Claro que não devemos descartar o surgimento de diversos outros aplicativos de namoro ao longo dos anos: mais ou menos seletivos, mais ou menos assertivos. E, consequentemente, a migração de usuários do Tinder para essas novas e aparentemente promissoras oportunidades.

Também não devemos desconsiderar “a mudança nas expectativas sociais, na moral ou nos papéis de gênero”, que transformam a visão de vida amorosa ou de família. Especialmente, nas últimas gerações. Mas é fato que existe uma exaustão generalizada, que é desencadeada pela era digital, pelo acesso desenfreado à informação, do qual, inclusive, não conseguimos dar conta.

O mais interessante disso tudo é que, para tentar se livrar dessa exaustão emocional, procura-se resposta nas próprias redes sociais, através de influenciadores do YouTube, TikTok ou Instagram, com as suas dicas preciosas sobre relacionamento. Parece que as novas gerações terão seus problemas provocados pelas redes e procurarão a solução nelas mesmas. Mas será isso possível?

Era digital: gerador de problemas

A grande questão é que a era digital é mais um gerador de problemas do que de soluções. É como se, para cada uma solução, cinco novos problemas fossem desencadeados. Isso porque a era digital é estruturada num sistema capitalista ainda mais agressivo do que aquele que conhecíamos vinte ou até mesmo dez anos atrás.

Homem ocupado e pressionado a fazer números em seu trabalho

No capitalismo, a negociação imposta é do tipo ganha-perde. Ou seja, para alguém ganhar, alguém tem que necessariamente perder. Quando entramos na era digital, esse sistema tende a crescer exponencialmente. E não só isso. Apesar de todos termos acesso à internet e aos componentes de mídia, são apenas alguns poucos que dominam as ferramentas ou que conseguem se lançar à influência. Quanto mais domínio de mercado alguém tem, menor a proporção do ganha-perde. Ou seja, o numerador é muito menor do que o denominador e a probabilidade de alguém que não deu as cartas do jogo ganhar é cada vez mais ínfima. Essa situação se assemelha ao funcionamento de um cassino: a vantagem é sempre da casa.

A droga da vez

Quando tratamos do virtual, o ganho se dá através dos acessos. Quanto maior o acesso, maior a monetização. O problema se inicia quando o canal entende que o que aumenta o número de acessos é o que provoca prazeres instantâneos no expectador, assim como um prato gorduroso de hambúrguer com fritas. Esses prazeres instantâneos e de curto prazo estão atrelados, normalmente, ao ganho de dinheiro e de poder. Exemplos disso são as casas de apostas e de jogos, as instituições financeiras e consultores, e todos aqueles que querem lhe ensinar a ser influente. Ou às satisfações instintuais usualmente reprimidas, como formas alternativas de praticar a agressão, a inveja e o sexo. Aqui, podemos citar a pornografia, os conteúdos violentos, incluindo os espaços que permitem discursos de ódio, e o jornalismo sensacionalista, por exemplo.

Bom, em geral, falo de discursos e produtos que agradam as pessoas, que as fazem acreditar que terão sucesso no que acreditam desejarem, e que, por darem esperança a elas, provocam uma sensação de bem-estar, mas que não dura muito tempo. E quando o efeito passa, elas sentem que precisam retornar, para conseguirem mais daquela sensação. Como o efeito de uma droga. No final das contas, são discursos ou produtos que, quase sempre, apesar de bonitos, agradáveis aos ouvidos ou saciáveis, não têm efeito transformador sobre a psique ou sobre o bolso do consumidor.

Capital e reconhecimento

E, sem levar em consideração os oportunistas, por mais que a casa tenha boa intenção e, de fato, acredite que aquilo que está vendendo vai te ajudar, os números sempre vão pesar: visualizações, curtidas, seguidores, compras, dinheiro entrando na conta. Então, existe uma tendência de se passar a trabalhar, não mais pelo que se acredita, mas pelo que se vende. Isso já acontece normalmente com alguns artistas, por exemplo, que têm os seus primeiros álbuns totalmente diferentes dos últimos. Agora, imagine isso acontecendo através das redes e na velocidade da era digital!

Assim, a rede social vai se compondo. E se, antes, decidíamos que não gostávamos mais de uma banda que mudou de estilo para cumprir com as cláusulas do contrato com a indústria da música, numa sociedade do cansaço, onde as pessoas não têm mais tempo de pesquisar, estudar, avaliar, questionar e, finalmente, filtrar, esses produtos e discursos vão ganhando cada vez mais espaço. Enquanto isso, a quantidade de pessoas que perdem financeira ou psiquicamente, sentindo-se cada vez mais exaustas e mais injustiçadas ou não reconhecidas, alcança números aterradores. Abismos sociais se tornam cada vez mais abissais em proporção ao número de casos de ansiedade e depressão. Aproveite para ler também Ansiedade: por que o Brasil lidera o número de casos.  

Então, retomo a pergunta, será possível encontrar uma solução para os problemas gerados na era digital dentro da própria era digital? Já discutimos em textos anteriores que também existe a tendência de uma minoria em buscar saídas através do resgate ao passado, ou seja, em outras eras, como você pode ler em Cohousing e êxodo urbano: um retorno ao familiar e em Descanso: artigo de luxo?. E que respostas essas pessoas têm encontrado?

As possibilidades do romance virtual

Será possível encontrarmos uma solução para a angústia que nos acomete pela forma como nos relacionamos com o romântico hoje? No final dos anos 90 e início dos anos 2000, a personagem Charlotte não conhecia os aplicativos de namoro. Conhecer a mentira e a verdade sobre o outro só era possível mediante o encontro. Hoje, os primeiros encontros são a segunda, terceira ou quarta perspectiva em relação ao outro. E só valem a pena se passarem pelo crivo da primeira. Talvez, para Charlotte, o Tinder a tivesse poupado de diversos encontros indesejáveis, mas também poderia tê-la impedido de dar uma chance a Harry – o careca, barrigudo e peludo, que, segundo ela, não tinham nada a ver, mas por quem se apaixonou e construiu uma vida junto.

Uma coisa é certa: apesar de o amor ser do tipo ganha-ganha, não existe amor sem investimento arrojado. Afinal, você corre o risco de sair com o coração partido, de sair devastado. E essa certeza é atemporal, desde que o amor foi inventado. Talvez, em algum momento, a civilização obsolete o termo, e até mesmo o sentimento, mas, enquanto formos apenas de carne e osso, o amor será isso. Já dizia o filósofo, romancista e dramaturgo francês, Alain Badiou, na tradução do psicanalista Miguel Nicolau Abib, em seu podcast Meditações Numa Emergência:

O amor sem riscos é uma impossibilidade, é como uma guerra sem mortos. O amor sem risco fica sempre paralisado entre duas coisas: o consumismo e os encontros casuais ou sexuais. O amor hoje está correndo o risco de se tornar algo irrelevante.
Um amor na era digital
Eu e o meu marido comemorando a nossa união na era digital

O personagem Harry de Sex and the City me lembra o meu próprio marido. Um homem sensível ao feminino, que não só respeita como encoraja constantemente o meu bem-estar. Um homem que tem prazer em me dar prazer, que presta atenção no que falo, que ouve todos os meus pensamentos e comenta todos os detalhes, que me olha todos os dias como se eu fosse a última bolacha do pacote. Um homem que cuida, que ama, que encontrei num aplicativo de namoro, em um momento de exaustão e de quase abandono.

Um homem avesso às redes sociais, mas que, em meio à era digital, permitiu-se seduzir por um app de relacionamento. Mas com um intuito nobre: encontrar alguém para compartilhar momentos e pensamentos. Algo que não é fruto da era digital nem valorizado por ela. Mas é valorizado por ele e por mim. O que permite que ele me reconheça e que eu o reconheça em contrapartida: ganha-ganha. É ao meu marido que dedico este texto, hoje.

Feliz dia do romance.

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