A crise do belo em Rousseau e Agostinho

Ainda sobre as enchentes no RS…

Muitos são os desdobramentos de uma crise. E aquilo que se revela é o que sempre esteve ali, logo abaixo de nossos narizes. A crise está para o país assim como o surto está para a análise. Numa crise, ficam expostas as vulnerabilidades, as fragilidades e os instintos mais perversos do ser humano.

Muitas foram as revelações daqueles enquanto vítimas, voluntários e observadores. A problematização de situações que chegavam no intuito de solucionar ou de sanar algo evidenciavam a complexidade do ser humano. Aquele que ajuda até se incomodar. O que sempre abusou e segue abusando independentemente do cenário. Aquele que seleciona as vítimas de acordo com os seus próprios princípios. O que está sempre à espreita dos momentos de oportunidade e por que não em meio à catástrofe?

No meio do balaio, alguns vão reconhecer, outros serão reconhecidos. Alguns serão heróis, outros permanecerão ou tornar-se-ão bandidos. Alguns irão adoecer, outros passarão desapercebidos.

A natureza humana

Para Jean-Jacques Rousseau, “a infância é o momento em que o homem está mais próximo da natureza”. Ele acredita que “é o adulto deformado pela sociedade quem corrompe a boa natureza infantil”. Essas são citações da psicanalista Ana Laura Prates, em seu livro ‘Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças’, que resume: “Rousseau parte da ideia de que a natureza humana é boa, mas que a sociedade a perverte.”

Utilizamos a palavra “humano” para falar de amor e solidariedade: humanizar, humanitário. E nos referimos aos instintos animais como selvagens, como algo negativo. Colocamo-nos mais próximos da natureza do que colocamos os próprios animais. E, em seguida, os domesticamos e atribuímos a eles o sentimento mais puro e incondicional. Um tanto quanto contraditório, não?

O ser humano nasce dentro da linguagem, à exceção do menino Mogli, claro! A sociedade perverte porque se apropria da linguagem ambígua e contraditória, na certeza de domina-la. Na linguagem, escolhemos quais palavras têm mais e menos valor, classificamos defeitos e qualidades e damos contornos à luz e às trevas. O problema é que, de percepção em percepção, as definições sofrem distorções. E a dualidade se mostra a única possibilidade – o bem e o mal, a luz e a treva, o belo e o feio -, sem sequer percebermos que um não existe sem o outro.

Não, não dominamos a linguagem. Mas a ideia já está disseminada e a cultura, contaminada. A grande questão, aqui, não é se a sociedade é perversa ou não, mas se nascemos perversos ou não. Quando Rousseau fala da “natureza humana”, o que ele quer dizer? Afinal, o que é natural do humano?

O belo em crise e o intelecto emergente

O fato é que nos distanciamos da natureza por causa da linguagem. Então, se a linguagem é natural do ser humano e é ela quem o perverte, não seria de nossa própria natureza a perversão? Se ser “humano” ou “humanitário” é algo que nos põe tão à prova – à prova das tentações da inveja, da ira e da luxúria -, isso não poderia ser um sinal de que fugimos do mal como o diabo foge da cruz? Um sinal de que somos mais facilmente maus do que bons. Um sinal de que tendemos a ser maus e de que fazemos um esforço descomunal para sermos bons.

Na definição de beleza para Santo Agostinho, o belo e a bondade se confundem. A bondade, ela em si mesma, tão atribuída de valor, que somente ela pode ser apreciada. Assim, a natureza nos enche os olhos, bem como tudo aquilo que se aproxima dela, em especial, a inocência. E a questão que fica é: até quando vamos ignorar que a natureza já está longe demais do nosso DNA e que a bondade ou a beleza, talvez, já não nos caiba mais? Pelo menos, não com o valor que lhes atribuímos.

Afinal, o que aconteceria se assumíssemos as nossas fragilidades – culpa, egoísmo, inveja, tristeza – e vivêssemos as nossas vidas mais completamente? Não pela metade, não interrompida pela castração, pelo dever, pela beleza ou pelo ódio e pela riqueza. Quem sabe uma vida vivida plenamente não nos dê em troca a liberdade do agir sem necessidade de troca ou de se fazer reconhecer? Quem sabe, a partir disso, não tenhamos algo de diferente a pedir ou a oferecer? Talvez, não da ordem da beleza, mas da ordem do intelecto, algo, que, de fato, pertence à raça humana.

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