Coca: a Psicanálise na América Latina

Tudo começa com a coca…

A América Latina é um importante centro de psicanálise e isso se deve à coca. Isso mesmo. Para quem não sabe, a coca foi instrumento de investigação de Sigmund Freud, iniciada em 1880, bem antes de se tornar ilegal. Freud observou que “a digestão e o humor melhoravam após beber água misturada com cocaína dissolvida”, segundo o artigo da BBC O desconhecido fascínio de Freud pela América Latina.

A história da coca

De acordo com o artigo acadêmico O uso da folha de coca em comunidades tradicionais: perspectivas em saúde, sociedade e cultura, publicado no periódico Historia, Ciência, Saúde – Manguinhos, “O uso da folha de coca na América do Sul remonta a um passado de mais de oito mil anos”.

Henman (1981) informa que as primeiras folhas de coca e recipientes de cal identificáveis foram descobertas no sítio de Huaca Prieta, na costa norte peruana, nas camadas correspondentes ao quarto período pré-cerâmico, datado entre os anos 2500 e 1800 antes de nossa era. Discorre ainda que parece difícil evitar a verdade trivial de que a folha de coca se expandiu até a Colômbia a partir das sociedades mais avançadas do Peru e do Equador.

Além de suprimir a fadiga de quem subia as cordilheiras, a sede e a fome, anestesiava a dor dos feridos e operados. As folhas de coca eram tão bem quistas que eram usadas em oferendas “a fim de honrar ídolos, huacas, divindades, montanhas, fontes e apachetas”. E, a princípio, apenas os reis e nobres podiam consumi-las. O mito do surgimento dessa folha sagrada conta a história de uma jovem e bela índia. Vaidosa e egoísta, Coca “seduzia os homens, enganando-os com seus atrativos físicos, rejeitando-os depois.”

As queixas pelos enganos de Coca chegaram ao imperador inca, que escutou com tristeza a decisão dos sacerdotes de sacrificá-la. Coca, então, foi morta em uma cerimônia solene, e os pedaços de seu corpo foram enterrados nos quatro cantos do Império. Não demorou muito e observaram que, em cada um desses lugares, crescia um arbusto com formosas folhas verdes, chamado, posteriormente, de Mama Coca, em recordação da mulher sacrificada.
A difusão e a reviravolta da coca

Cristóvão Colombo foi, então, o primeiro a dar notícias sobre a folha de coca à Europa. 

Ferreira e Martini (2001) comentam que outro importante escrito foi o de Américo Vespúcio, em 1499, com publicação em 1507, que já descrevia a coca sendo mastigada com cinzas. Esclarecem que o uso concomitante, no ato da mastigação, de cinza ou bicarbonato de sódio, utilizado até hoje, deve-se ao fato de sua absorção pela mucosa da cavidade oral só se realizar em pH alcalino. Calculam que a sua ação farmacológica, quando mascada, é semelhante ao estímulo provocado pela ingestão de doses elevadas de cafeína, não sendo, no entanto, acompanhada de euforia.

No período colonial, a coca teria sido inicialmente proibida pela igreja católica, que alegava ser um obstáculo para difundir o cristianismo. Depois, o rei Felipe II teria declarado “o ato de mascar a coca hábito essencial à saúde do índio”, já que os espanhóis haviam constatado que “os índios não conseguiam fazer o trabalho pesado sem o uso de coca”.

As autoridades religiosas espanholas chegaram a coletar dízimos do comércio de coca, e como os nativos não valorizaram o ouro e a prata, os espanhóis pagavam os serviços prestados com folhas de coca e outros produtos. É nessa perspectiva que avançamos na história para compreender melhor os processos pelos quais a folha de coca se transformou de produto demoníaco em alvo de medidas que criminalizam e estigmatizam o seu uso.
A coca passou, mas a psicanálise na América Latina não passará

Após publicar o artigo Über Coca, quando surgiam estudos sobre dependência e mortes por overdoses, Freud “deixou de defender os benefícios estimulantes e analgésicos da coca”. Para ler mais sobre os efeitos colaterais de opióides, leia também Acontece nos filmes, acontece na vida: toxicomania. Mesmo assim, ele seguiu estreitando “laços com importantes médicos, psiquiatras e intelectuais do continente”.

Freud teria descrito o psiquiatra peruano Honorio Delgado Espinoza como o seu “primeiro amigo estrangeiro”. Os dois “trocaram cartas, artigos de jornais e presentes durante anos.” 

Em 1915, Delgado publicou o seu primeiro artigo sobre psicanálise no Peru, intitulado El Psicoanálisis. Em sua formação acadêmica, identificava-se com Aristóteles, Cervantes, Shakespeare, Goethe e Jaspers, por exemplo, que já lhe faziam uma marca humanista. Além de Freud, Delgado mantinha correspondência com outros seguidores dele, como Alfred Adler e Karl Abraham. As conexões ideológicas entre Freud e Nietzsche deixavam Delgado ainda mais interessado pela psicanálise. 

Em 1919, o psiquiatra peruano publica a sua tese, defendida em 1917, em formato de livro, “o primeiro volume escrito em castelhano sobre psicanálise ”.

“Este livro foi bem recebido pela comunidade psiquiátrica internacional e colocou Delgado na cena mundial. No Journal Medicine of Bordeaux e The Psychoanalytic Review, publicaram-se honrosas menções ao seu livro.”

Na Revista de Psiquiatría y Disciplinas Conexas, junto com Hermilio Valdizán, “o dueto acadêmico mais importante da psiquiatria no Peru”, publicou diversos artigos referentes à psicanálise e se tornou “o espaço de divulgação do freudismo” no país. Delgado se tornou o primeiro psicanalista do Peru. 

E, assim como a coca saiu do Peru e se espalhou por outros países, a psicanálise saiu de boca em boca entre médicos e intelectuais das Américas. Hoje, a Argentina é a maior referência da América Latina em psicanálise, sendo Buenos Aires uma das cidades com o maior número de psicanalistas no mundo.

A tradicional reinvenção

Essa história eu vos trouxe para mostrar que é graças à coca que hoje o Brasil usufrui de uma psicanálise mais avançada. Talvez, mais tradicional, justamente, por ser mais livre. Confuso, não? Bom, para quem lê lacanês, nada mais habitual. Afinal, a psicanálise é complexa e o é porque nós somos seres complexos. 

Anunciou Jacques Lacan em discurso de encerramento das jornadas da EFP, em 09 de outubro de 1978, “não se pode transmitir a psicanálise; é preciso reinventá-la” (Pablo Peusner em prefácio à edição argentina do livro Da fantasia de infância ao infantil na fantasia de Ana Laura Prates). 

Assim como a coca foi reinventada – passando de símbolo de adoração à narcotráfico ou de analgésico à dependente químico -, a psicanálise deve ser reinventada a cada troca de era ou necessidade cultural. Afinal, ela deve acompanhar a complexidade humana, que faz descobertas, que muda de opinião e que experimenta novas formas de sofrimento. 

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