Liberdade e tradição
Eleito no final do ano passado e tomando posse, à frente da Casa Branca, nesta última segunda-feira, Donald Trump acabou sendo o responsável pela popularização do termo woke durante a sua campanha presidencial. O conceito virou tema de embate entre democratas e republicanos. Enquanto para os primeiros é visto como uma representação de “valores como inclusão, diversidade e igualdade”, tendo progressistas na liderança, para os últimos, é visto como “uma ameaça aos valores tradicionais, sendo associada à censura e ao controle social”.
…uma forma de “extremismo da esquerda” que coloca em risco a liberdade de expressão e o estilo de vida tradicional americano.
Não lhe parece estranho colocar “liberdade de expressão” e “estilo de vida tradicional” na mesma sentença como orações aditivas? Afinal, tradição é sinônimo de liberdade? Bom, tudo bem, podemos pensar a liberdade de escolha pela tradição, certo? Mas, então, onde fica a liberdade de se expressar de outras formas que não seja da maneira tradicional? Como algo que, a princípio, vai contra a tradição pode estar associado ao controle social? Não é a própria tradição que faz controle? Controle dos papéis do homem e da mulher, do sexo, da fertilidade, da natalidade…
O termo “woke” deriva do verbo em inglês “wake” (acordar), que, na prática, significa “estar esperto”. No contexto cultural dos Estados Unidos, ser “woke” refere-se à conscientização sobre questões sociais e políticas, especialmente ligadas à igualdade e à justiça social.
Confusão de conceitos
O livro ‘A esquerda não é woke’, da filósofa norte-americana Susan Neiman tem repercutido internacionalmente. A autora diz que, em sua opinião, existe uma confusão entre “ser de esquerda” e “ser woke”.
Neiman não apenas considera “esquerda” e “woke” conceitos opostos, como também argumenta que, ao se misturar, eles ajudaram Donald Trump a vencer as eleições presidenciais nos EUA em novembro.
A filósofa explica que o termo surgiu na década de 1930. Usado por músicos do blues afro-americano, fazia referência às denuncias de racismo, só voltando a ser utilizado no primeiro mandato Trump, a partir do movimento Black Lives Matter, que se intensificou com a morte de George Floyd. Neiman esclarece ainda que “o que chamamos atualmente de woke é o que nos anos 1990 era chamado de politicamente correto” de forma irônica pelos “socialistas antistalinistas”, para falar das pessoas mais rígidas. E, somente depois, a direita se apropriou da expressão, para criticar a “esquerda woke”.
Justiça versus poder
Neiman defende que a luta pela justiça é de esquerda. E a diferencia dos liberais pelo “universalismo, em vez de tribalismo”, já que os republicanos são também conservadores dos valores da família tradicional – o que os colocaria, dentro de uma luta, numa busca exclusiva pelo poder. E é assim que Neiman aproxima a direita do woke: quando se defende apenas os seus.
Minha forte sensação é que sim, a diversidade é um bem — mas não o bem supremo. E é um insulto às mulheres contratá-las só porque são mulheres, assim como é um insulto às pessoas não brancas presumir que, só porque não são brancas, elas têm uma espécie de autoridade.
O futuro, mais uma vez, ameaçado?
Além disso, a atual cultura woke, mesmo “sem querer”, acaba reforçando os valores tradicionais ao negar o progressismo, como acontece em ‘O Conto da Aia’ (aproveite para ler também O conto da mulher: perversão e empoderamento).
Quando dizem que os afro-americanos nos EUA ainda vivem sob as condições das leis de Jim Crow, ou até mesmo de escravidão, ou que as mulheres ainda vivem no patriarcado, eu digo que sim, ainda vivemos com racismo e sexismo, mas dizer que não avançamos na luta contra isso é uma visão muito perigosa, porque leva as pessoas a se desesperarem com o progresso futuro.
E é o que já podemos evidenciar com a ideia do lento cancelamento do futuro, onde viver é “aqui e agora” e, portanto, no efeito cumulativo, à base de excessos, de instintos. Num sobreviver em pequenos bandos, na tentativa de perpetuar apenas os semelhantes, assim como o era nos primórdios. Quem tem mais voz? Quem tem mais poder? Quem melhor sobrevive? E, então, alguma semelhança entre direita e cultura woke? A verdade é que as tribos se apropriam dos termos e conceitos como melhor lhes convêm. Afinal, quem está mais awake?