O filme
‘Um estranho no ninho’ é vencedor do Oscar pela atuação de Jack Nicholson, que, no papel de um meliante em sua última passagem pela prisão, finge-se de louco para ser enviado a um sanatório. No hospital psiquiátrico, a personagem de Nicholson se utiliza de suas artimanhas para instalar o caos: incentiva e persuade “seus colegas internos a ir contra a ordem vigente, questionar os medicamentos e a rotina que levam ali dentro”. Um anti-herói, que defende a liberdade.
Na busca…
Sentir-se um estranho no ninho significa dizer que não nos identificamos com determinados grupos, lugares ou culturas. Mesmo que se trate de nossa própria família, casa ou tradição. Saímos de nossa cidade e, às vezes, até mesmo de nosso país em busca de um algo a mais, de um encaixe, de um sentimento de completude. Se não se trata das oportunidades de trabalho, trata-se do clima, da segurança, das pessoas, das opções de entretenimento. Ou se trata de uma fuga: de um lugar que não nos acolhe, não nos reconhece. Seja pela nossa cor, sotaque, aparência, seja pelas nossas ideias. Talvez, uma impressão, talvez, um fato.
O psicanalista Contardo Calligaris nasceu na Itália, mas fugiu de lá assim que pôde. Morou na França, na Suíça, nos Estados Unidos e no Brasil. Em seu livro ‘Hello, Brasil!’, diz que, devido a suas formações acadêmicas nos dois primeiros países, tornou o francês a sua língua culta. Conta também que apesar de ter casado várias vezes ao longo da vida, nunca se casou com uma italiana.
Já mencionei que eu não tolerava a forma como a Itália do milagre econômico aparecia na comédia cinematográfica da época. O riso das plateias significava para mim um reconhecimento complacente (nós éramos aquilo): a sátira grotesca do cinema revelava um lado obsceno do qual o público parecia se orgulhar.
Pois bem, eu me envergonhava disso. A vulgaridade do país que aparecia na tela se espelhava na vulgaridade das plateias que achavam graça em se ver assim retratadas. E a vulgaridade do pós-guerra confirmava a do fascismo. A Itália da comédia daqueles anos não era o meu país, eu não queria que fosse o meu. Eu poderia ter dito que era um país que não prestava.
Migrantes
Assim como Calligaris, milhões e milhões de pessoas migram todos os anos para uma outra cidade ou para um outro país. Uma rota bastante comum de migração, por exemplo, é entre a França e os países colonizados por ela. O psiquiatra e psicanalista Frantz Fanon, afro descendente, nasceu na Martinica, localizada no Caribe, e, assim como diversos outros antilhanos, foi enviado ainda criança para estudar na França. Em sua obra ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, ele conta sobre as dificuldades de reconhecimento de um negro com sotaque crioulo em terras parisienses, tanto para os brancos quanto para os seus semelhantes.
Fanon explica que, já em sua terra natal, tenta-se abafar as tradições, no intuito desesperado de fazer os martinicanos se encaixarem na cultura francesa:
Na escola, o jovem martinicano aprende a desprezar o patoá. Fala-se do crioulismo com desdém. Certas famílias proíbem o uso do crioulo e as mamães tratam seus filhos de pivetes quando eles desobedecem:
(…) Cale a boca, já lhe disse que você tem que falar francês
O francês da França
O francês do francês
O francês francês.
Ele complementa:
O negro, chegando na França, vai reagir contra o mito do martinicano que-come-os-RR. Ele vai se reconsiderar e entrar em conflito aberto com tal mito. Ou vai se dedicar, não somente a rolar os RR, mas a urrá-los.
Fanon diz que o francês falado a partir do crioulo é reconhecido imediatamente pelos franceses como petit-nègre, que consideram um francês falado de forma errônea, tendendo a diminuir aqueles que assim o falam. Dessa forma, os antilhanos se vêm obrigados a escolher um lado.
Em uma situação bem específica, quando estudantes antilhanos se encontram em Paris, duas possibilidades se apresentam:
— ou sustentar o mundo branco, isto é o mundo verdadeiro; o francês é então a língua usada, lhes sendo possível enfrentar alguns problemas e adquirir em suas conclusões um certo grau de universalismo;
— ou rejeitar a Europa, “Yo”,10 e se reunir através do patoá, instalando-se bem confortavelmente no que chamaremos de umwelt martinicano; queremos dizer com isso — e dirigimo-nos principalmente a nossos irmãos antilhanos — que, quando um dos nossos amigos, em Paris ou em qualquer outra cidade universitária, tenta considerar com seriedade um problema, acusam-no de se julgar importante, e o melhor meio de desarmá-lo é fechar-se no mundo antilhano, brandindo o patoá crioulo. Esta é a causa de muitas amizades desfeitas, após algum tempo de vida européia.
Reconhecendo…
No final de outubro, a BBC publicou uma reportagem sobre o “êxodo silencioso”, que se trata de “um número cada vez maior de franceses de origem africana que estão deixando o país”, para morar na terra natal de seus pais, porém, sem sua família. O motivo seria “o aumento do racismo, da discriminação e do nacionalismo”, mas muitos alegam também sentir que têm responsabilidade para com seu país de origem. O que pode acabar fortalecendo uma grande decisão como essa.
O maior impasse da mudança é que, quando voltamos, já estamos infectados pela outra cultura. Somos duas ou mais culturas ao mesmo tempo e acabamos nos sentindo estrangeiros em nossa própria terra natal. É o que conta uma das entrevistadas que optou por retornar ao Senegal.
Quando cheguei ao Senegal há três anos, fiquei chocada ao ouvir eles me chamarem de ‘francesita’.
Eu disse a mim mesma: ‘Tudo bem, sim, de fato, nasci na França, mas sou senegalesa como vocês’. Então, no início, temos essa sensação de dizer a nós mesmos: ‘Fui rejeitada na França, e agora venho para cá e também me rejeitam’.
Há alguns anos, eu também optei por sair da minha cidade natal. Aqui, reconhecem-me como estrangeira assim que abro a boca. E, quando visito a minha família, reclamam que falo diferente; já não me reconhecem mais. Perseguem o meu sotaque por todos os lados. Procuro um ninho, encontro algo estranho.