Presos numa cultura de exploração

Trabalho escravo

No site do Conselho Nacional do Ministério Público, o trabalho escravo contemporâneo é descrito da seguinte forma:

Na legislação brasileira, o artigo 149 do Código Penal prevê os elementos que caracterizam a redução de um ser humano à condição análoga à de escravo. São eles: a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, a sujeição a condições degradantes de trabalho e a restrição de locomoção do trabalhador.

Ferir a constituição pode implicar em “pena de reclusão, de dois a oito anos, além de multa e pena correspondente à violência aplicada”. E ainda no “pagamento de indenização por dano moral ocasionado à coletividade”. O Ministério Público encoraja a denúncia através do disque 100 ou dos sites do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal e do Ministério do Trabalho, Emprego e Previdência.

O Brasil foi um dos primeiros países “a criar uma comissão de fiscalização das condições de trabalho perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT)”. Entre 1995 e 2020, foram resgatados cerca de 55 mil trabalhadores. “Em sua maioria, migrantes internos ou externos, que deixaram suas casas para a região de expansão agropecuária ou para grandes centros urbanos, em busca de novas oportunidades ou atraídos por falsas promessas.”

Dados dos resgates

55 mil pessoas resgatadas em 25 anos… Por ano, isso daria 2,2 mil pessoas. No entanto, apesar dos esforços dos fiscais, procuradores do trabalho e Polícia Federal, dos inúmeros meios de comunicação e da velocidade com que essas notícias são divulgadas, além dos programas de responsabilidade social a que as empresas vêm aderindo, apenas em 2023, o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) resgatou um total de 3,2 mil trabalhadores no regime análogo à escravidão, considerado o maior número de resgates dos últimos 14 anos.

A região Sudeste foi onde aconteceu o maior número de ações e resgates, com 225 estabelecimentos fiscalizados e 1.153 trabalhadores resgatados, seguido do Centro-Oeste, com 114 fiscalizações e 820 resgates. O Nordeste veio em seguida, com 552 trabalhadores resgatados e 105 ações realizadas. No Sul, foram realizadas 84 ações e 497 resgates. No Norte, 168 resgatados e 70 ações realizadas pelo MTE.

Os setores com os maiores números de resgate foram o de cana-de-açúcar, café e uva, nessa ordem. Dentre os estados com os números mais expressivos, aparecem Goiás (739), Minas Gerais (651), São Paulo (392) e Rio Grande do Sul (334).

O caso das vinícolas

Entre os casos no Rio Grande do Sul destaca-se o da Fênix, empresa terceirizada que prestava serviço para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, onde 210 trabalhadores foram resgatados na colheita da uva.

É interessante notar que as três vinícolas gaúchas carregam em sua marca a política ESG, basta visitar os seus sites para verificar. Do inglês, Environmental, Social and Governance, veja como o governo define esse conceito:

O primeiro é o pilar ambiental, que diz respeito ao impacto das atividades da empresa no meio ambiente e sua eficiência no uso de recursos naturais. O segundo é o pilar social, que abrange as relações da empresa com funcionários, comunidades e a sociedade em geral, incluindo questões de diversidade, igualdade e direitos humanos. O terceiro pilar é a governança, que se refere às práticas de gestão, transparência, ética e responsabilidade corporativa.

Fazendo vista grossa

Quem trabalha ou já trabalhou nas indústrias, especialmente nas alimentícias, que requerem cuidados bastante complexos, sabe bem que a teoria é muito mais viável do que a prática e, que, em diversos casos, uma não acompanha a outra. Mas, como em terra brasilis, a fiscalização não é nosso forte e quando há, faz-se vista grossa, seguimos a operar a todo vapor. É por isso que esquemas de trabalho análogo ao escravo, por exemplo, só são revelados muitos anos depois de sua iniciação e seguem sendo denunciados até os dias atuais, mesmo com todas as facilidades de comunicação.

Trabalhar em uma das vinícolas denunciadas me fez perceber o quanto só olhamos para aquilo que nos interessa, mesmo com toda a informação disponível. Cada um em sua posição hierárquica e com as suas respectivas atribuições. Cada um em sua bolha.

Em 2011, o Ministério do Trabalho e Emprego publicou o Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo, mas isso não foi suficiente para as vinícolas, por exemplo, reverem os seus procedimentos. É provável que nem tenham tido notícia do manual e, se tiveram, entenderam que aquilo não era responsabilidade sua, afinal, a parte burocrática dentro das suas propriedades estava em dia.  

Mas o que acontece quando esses trabalhadores começam a desmaiar em suas propriedades? E a demandar por uma quantidade incomum de analgésicos para poderem seguir trabalhando? O que acontece quando esses trabalhadores adormecem durante um treinamento para atuar em suas propriedades e revelam aos instrutores que a fadiga é em função da jornada alucinante de acordar às cinco da manhã para ir aos parreirais e retornar do descarregamento de uvas a uma da manhã seguinte?

Vítimas fazem novas vítimas

Nada. Mesmo com tantas pessoas envolvidas nesses processos e tendo acesso a todas essas informações, nada acontece. Porque “sempre foi assim”, “isso é bobagem, minha família trabalha nas nossas terras todo ano, o trabalho é árduo mesmo”. Bom, antes de seguir, preciso assinalar que trabalhar na terra do outro e trabalhar na própria terra dizem respeito a valores diferentes. Em O escancaramento do regime escravista no Brasil, já havíamos falado da cultura do colono gaúcho em relação ao trabalho. E isso é um ponto muito importante para entendermos o processo exploratório.

Os colonizadores, que se utilizavam de uma exploração extrativista, onde se arrasa a terra, promoveram, então, a política de branqueamento do Brasil, fazendo contratos com os futuros colonos europeus para popular o país. O psicanalista Contardo Calligaris conta em sua obra ‘Hello, Brasil!’ que visitou uma família de origem italiana que viveu na completa miséria no Rio Grande do Sul, achando que ao comprar um pedaço de terra no Brasil estaria adquirindo “um sonho de felicidade”. Cito trecho referente ao relato da família, nas páginas 48-49:

Sabe-se que a fazenda para a qual o colono era levado exercia o monopólio na venda dos bens, inclusive os necessários à sobrevivência e ao cultivo do pequeno lote de terra da qual o mesmo colono tinha o usufruto. A circulação física dos colonos, aliás, era frequentemente proibida. Por consequência, a venda de eventual excedente da produção do colono passava pelo mesmo monopólio. De tal forma que, paradoxalmente, o colono comprava bens pelo preço imposto pelo vendedor e vendia bens pelo preço imposto pelo comprador… O colono, assim, estava ligado ao dono da fazenda por uma dívida impagável, comparável ao preço da liberdade para o escravo: cobravam dele taxas arbitrárias de juros e davam-lhe verdadeiros calotes, como ao cobrar novamente pela viagem rumo ao Brasil (que ele já pagara na Europa) ou exigir dele o pagamento de aluguel por uma moradia que era garantida no contrato de trabalho.

Uma cultura de exploração

Isso lhe lembra algo que aconteceu recentemente? Pois é, a denúncia do trabalho análogo ao escravo em 2023 aqui na serra gaúcha revelou condições semelhantes. Só que, dessa vez, o colono ocupava a posição daquele que um dia foi o seu explorador. Para Calligaris (pág. 51), instaurou-se no Brasil uma cultura de exploração:

O corpo escravo se constitui assim como o horizonte fantasmático universal das relações sociais, como se o colonizador tivesse conseguido instaurar a sua exploração do corpo da terra como metáfora última das relações sociais. E, de fato, o corpo escravo é onipresente.

Tão onipresente, que é possível sentir-se explorado em todas as ocupações e posições sociais. No entanto, como o sentir-se explorado é da ordem da angústia, ele requer sempre uma saída de alívio, que, invariavelmente, é o explorar. O empresariado, por exemplo, sente-se explorado pelo governo que cobra tributos abusivos para manter o funcionamento dos seus estabelecimentos. Em contrapartida, para sentir que seus esforços valem a pena e, tantas vezes, provar que é possível enriquecer, o empresário oferece baixos salários, muitas vezes, cobra acima do que vale o seu produto e, tantas outras, sonega imposto.

Explorados explorarão!

Aqueles que se tornam gerentes passam a não bater mais o ponto, o que, a princípio, remete a uma posição privilegiada, um cargo de confiança. Com o tempo, o gerente percebe que não bater o ponto é sinônimo de trabalhar horas a mais, de estar disponível 24 horas por dia para a empresa e, portanto, de não estar coberto pelas leis trabalhistas. Em casa, o indivíduo pede para a empregada doméstica passar do seu horário, vir no final de semana ou fazer algo que está fora do seu escopo de trabalho. O cuidador ou acompanhante que contrata para os seus pais idosos pode acabar atuando como empregado doméstico.

Os demais colaboradores precisam atender as demandas de produção, que tantas vezes se tornam massacrantes por ingerência mesmo. Assim, somam-se horas extras, que, muitas vezes, nem são remuneradas e devem ser compensadas de acordo com a necessidade da empresa, e não do empregado. As políticas de incentivo ao trabalho, como prêmio assiduidade, são criadas para compensar a ingerência. Além de dar uma sensação de aumento do salário, que, na primeira crise de saúde, revela-se uma farsa. Não é incomum encontrar empregados trabalhando em estado febril, colocando o produto e outras pessoas em risco. Ou porque o hospital se negou a dar atestado, baseando-se na cultura de exploração, ou porque o prêmio assiduidade está na reta.  

Para compensar o sentir-se explorado, também não é incomum que consigam falsos atestados, que façam corpo mole ou que até mesmo sabotem processos e produtos e que procurem modos de processar a empresa. No serviço público, vemos o descaso e os maus atendimentos, por exemplo. Na saúde, psicólogos e médicos definem consultas com tempos reduzidos para valer o preço que o plano paga, mesmo que isso implique no insucesso do tratamento.

Um povo preso no jogo da corrupção

Em outras relações e em todas as camadas, é sempre detectável o “tirar vantagem”. É o caso das ajudas do governo como o Bolsa Família, que deveriam ser provisórias e acabam se arrastando por anos a fio; das ajudas de emergência, que acabam beneficiando aqueles que não precisam; dos benefícios extras e privilégios dos funcionários públicos, que saem de um orçamento que ainda não atende o básico do restante da população.

E, então, temos um povo marcado pela corrupção. De forma tão intrínseca, que nem o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Jorge Luiz Borba, deu-se conta que submetia Sônia Maria de Jesus ao trabalho análogo ao escravo em sua casa. Sônia estava desaparecida da família e da sociedade há 40 anos. Sem nunca ter frequentado a escola, o desembargador ainda alegou que Sônia é considerada uma pessoa da família. O caso veio a público no ano passado, durante uma operação do MTE.

Há quem diga que “poderia ser pior” ou que situações como essas, mesmo não sendo ideais, podem ter livrado essas pessoas de destinos mais miseráveis. Mas o fato é que sempre existe uma probabilidade de um destino mais feliz. E a questão que fica é: quando vamos começar a nos comparar ao que é bom? Será que algum dia vamos conseguir nos desvincular do rótulo “este país não presta”? Quem sabe no dia em que todos nos percebermos explorados e exploradores? Ao mesmo tempo, vítimas e algozes. Em geral, do maior para o menor, como que numa cadeia alimentar. Afinal, todos queremos ganhar. E, para ganhar, alguém tem que perder.

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