Campo afro-religioso
O professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ari Pedro Oro, publicou o artigo ‘O atual campo afro-religioso gaúcho’ em 2012 na revista de Ciências Sociais Civitas. Nele, Oro afirma que o estado sulista é o que mais concentra templos afro-brasileiros no Brasil, os famosos terreiros.
Estima-se a existência neste Estado de cerca de trinta mil terreiros, espalhados por todo o seu território, havendo, porém, uma concentração maior na região metropolitana de Porto Alegre.
Nesse mesmo sentido, o censo do ano 2000 registrou no Rio Grande do Sul o maior número de indivíduos que se declararam pertencentes a alguma religião afro-brasileira.
Era, então, 1,62% da população gaúcha, contra 1,31% da população do Estado do Rio de Janeiro, que ocupava o segundo lugar. A Bahia aparecia somente com 0,08% da população que se declarou seguidora das religiões afro-brasileiras. No Brasil como um todo, 0,3% da população se manifestou como pertencente ao segmento religioso afro-brasileiro.
Em 2010, a média nacional se manteve, bem como a posição do Estado gaúcho.
Desta feita, o Rio Grande do Sul também aparece como recordista nacional em números absolutos de indivíduos vinculados às religiões afro-brasileiras. De fato, são 157.599 indivíduos deste Estado, o que corresponde, a 1,47% da população total, que reivindicaram o seu pertencimento religioso afro-brasileiro. Esta porcentagem sobe para 2,52% se tomarmos como referência a Região Metropolitana de Porto Alegre e para 3,35% se nos restringirmos somente a Porto Alegre.
População branca e embranquecida
É interessante notar que, em 2022, a maior população autodeclarada branca é a do Rio Grande do Sul (78,4%). E, na lista dos estados com maior população parda, o território gaúcho aparece em último lugar, com menos de 18%. Ou seja, o Estado gaúcho é aquele que possui a menor população negra. E, mesmo assim, é o que apresenta o maior número de terreiros. Curioso, não?
Bom, assim, voltamos ao final do século XVIII, quando Porto Alegre foi fundada por colonos açorianos e seus respectivos escravos. De acordo com a historiadora Helen Osório:
…o percentual de escravizados de origem africana entre a população local oscilava entre 28% e 36%, patamar similar ao da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro.
Abertura religiosa
Existem algumas hipóteses para se pensar a maior adesão às religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul. Uma delas se baseia na imigração de europeus, em especial, de alemães, que trouxeram junto a sua fé luterana, para contrapor o catolicismo, religião dominante. Oro conta que:
Embora a relação entre as religiões não tenha sido sempre pacífica, o fato é que o pluralismo religioso iniciou no Rio Grande do Sul muito antes do que em muitas outras regiões do país, onde o catolicismo se manteve não somente hegemônico como também exclusivista até pouco tempo atrás.
Oro explica que, apesar de o luteranismo se distanciar em termos sociais e simbólicos das religiões de matriz africana, o espaço que ele ganhou, enfrentando a fé católica, pode ter dado abertura a outras manifestações religiosas.
Em seu artigo, Oro expõe três expressões componentes do complexo afro-religioso gaúcho: a Linha Cruzada ou Quimbanda, o Batuque e a Umbanda. Essa última seria a modalidade mais brasileira, pois reúne “elementos do catolicismo popular, do espiritismo kardecista e das religiosidades indígenas e africanas”.
No Rio Grande do Sul, há muito tempo estas três modalidades de culto ultrapassaram a fronteira étnica e se tornaram universais, sendo hoje frequentadas por indivíduos de distintos grupos étnicos e de diferentes camadas sociais (Oro, 1988).
A influência da simbologia afro
Em matéria da BBC, Vitor Queiroz, professor de Antropologia da UFRGS, diz que os símbolos desse complexo afro-religioso gaúcho estão espalhados pela capital, como no Mercado Público, no Palácio Piratini, na Igreja das Dores, no antigo pelourinho da Rua das Andradas e no leito do Lago Guaíba.
Na matéria, Onir Araújo, advogado da associação do Quilombo Kédi, contendo 120 famílias, na avenida Nilo Peçanha, comenta que:
Porto Alegre dorme todas as noites ao som de tambores de matriz africana. Em todos os bairros, se você apurar bem o ouvido.
É muito interessante pensar que a primeira vez que eu fui ouvir falar do Umbanda foi justamente quando vim morar no Rio Grande do Sul. Logo eu, que venho do Nordeste, região do país com a maior população negra. E muito ouvi sobre o Umbanda, mas sempre de pessoas brancas que frequentavam os terreiros. E logo no Sul, onde mais vejo a fé cristã se manifestar.
Talvez, os símbolos dessas religiões estejam tão presentes no estado, que acabaram sendo incorporados pela cultura gaúcha, não pertencendo apenas aos negros hoje presentes, mas aos embranquecidos e aos próprios colonos, que expõem em seus jardins as mais diversas crenças, colocando a estátua de uma santa ao lado da de um extraterrestre.
Outras tradições e contradições
Aliás, a cultura gaúcha, para se compor, apropriou-se de símbolos diversos, inclusive, dos indígenas, dos Charruas e Minuanos, que viviam nos Pampas quando chegaram os espanhóis e os portugueses. “A palavra ‘Gaúcho’ vem da língua indígena Quechua, e significa ‘filho de mãe indígena com um forasteiro’”. E, como a região dos Pampas se estende passando por Argentina, Paraguai e Uruguai, a influência da cultura espanhola é bastante presente, como vemos tão claramente na música gaúcha.
Apesar do passado “preto”, de afrodescendentes e indígenas Quechua, o Rio Grande so Sul liderou o ranking de injúrias raciais no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. As cidades de Porto Alegre, Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Canoas e Rio Pardo concentraram os casos. Em 2023, o PoderData realizou uma pesquisa sobre o reconhecimento da existência do racismo no país e registrou que essa percepção é menor na região Sul (61%). Saiba mais em O negro no Rio Grande do Sul: uma história de omissão e esquecimento.
Bom, assim como é possível que analistas emprestem signos aos seus analisandos para que deem sequência à cadeia de significantes e possam, a partir daí, pensar em novas saídas para os seus dilemas, o povo gaúcho, mesmo não assumindo os seus antepassados na sua totalidade – por talvez ter se embranquecido em demasia -, não só pega emprestado como compra os seus símbolos e vive em função deles. E, muitas vezes, sem sequer se dar conta.
Maravilhoso artigo sobre a miscigenação, as crenças, o preconceito e o racismo no Brasil. Deve ser uma surpresa para muitos saber que no Rio Grande do Sul e em especial em Por to Alegre existem tantos negros e pardos e que boa parte desses indivíduos não assumem a sua condição racial publicamente. Entretanto a sua preferência religiosa, de alguma forma, os denuncia. Dai parecer contradição os dados estatísticos com a realidade.
Parabéns Déborah pelo rico e bel escrito artigo!