O avesso do que é visível e palpável
A grosso modo, essa seria a tradução livre do tema central abordado no livro do escritor e colunista da Folha de São Paulo Jeferson Tenório, ‘O Avesso da Pele’.
Citação do livro (J. Tenório, p. 61):
Você sempre dizia que os negros tinham de lutar,
pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo
e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso,
você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê.
[…] Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único.
E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.
Depois de atravessarmos uma maré de escândalos iniciada pela diretora de uma escola estadual em Santa Cruz do Sul, que quase baniu a obra em escolas de 18 municípios do Rio Grande do Sul e que, de fato, tiraram-na de circulação em outros estados para “avaliação”, restam ainda as polêmicas.
Perfil do livro
‘O Avesso da Pele’ é uma ficção contemporânea que aborda o racismo no Brasil. Conta a história de um jovem que teve seu pai morto em uma abordagem policial. Pedro é um jovem negro da periferia, que tenta buscar as suas origens e o sentido das vidas daqueles que o cercam, inclusive, dele mesmo. Trata das relações familiares dentro de um caráter existencial.
Citação do artigo de opinião da Brasil de Fato RS:
O protagonista nos vai levando da infância à vida adulta na sua busca pela história e a vida do pai brutalmente assassinado por um policial perverso que julgou ser senhor sobre a vida de um professor pacato que lutou a vida inteira para dar um pouco de dignidade à família, ao filho que agora deverá buscar seu corpo e a si mesmo.
Vencedor do Prêmio Jabuti – o mais tradicional prêmio literário do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) – em 2021, a obra de Jeferson Tenório passou por uma seleção em 2019 e foi aprovada e inserida no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2022. A estadual Ernesto Alves foi uma das escolas que escolheu o livro para ser usado em 2024, conta matéria da Brasil de Fato RS.
Debate e polarização
Tenório se manifestou na sua página do Instagram:
O Avesso da Pele já foi adotado em centenas de escolas pelo Brasil, venceu o prêmio Jabuti, foi finalista de outros prêmios, teve direitos de publicação vendidos para mais de 10 países, foi adaptado para o teatro. Além disso, o livro foi avaliado pelo PNLD, em 2021, ainda no governo Bolsonaro. A própria diretora assinou a ata de escolha do livro.
A diretora da escola Ernesto Alves, Janaina Venzon, teria publicado um vídeo nas redes sociais, onde denuncia a obra de Tenório, categorizando-a como inadequada e tendo como argumento a explicitação de cenas de sexo. No entanto, o livro traz outras diversas questões que na nossa sociedade ainda caem em polêmica, como a religião candomblé, a crítica às escolas porto alegrenses e ao sistema educacional brasileiro, além da exposição da violência policial. Veja mais em Censura a O Avesso da Pele de Jeferson Tenório.
Bom, esse assunto acabou, pra variar, polarizando o país. Dividindo a população entre conservadores, que acabaram sendo chamados de “grupos bolsonaristas”, e progressistas, conhecidos também por “petistas”. Um lado acusa o outro de “distorções e fake news”, enquanto o outro acusa um de ser “só uma questão ideológica, sem soluções concretas”. Ou seja, um acusa o outro, em ambos os sentidos, de pura pantomima.
Inclusive, discussões entre os chamados “grupos bolsonaristas” acrescentam nas críticas ao livro a exposição ao uso de drogas e a palavrões. Veja mais em Qual é o papel dos pais na educação dos seus filhos na sala de aula? Bancada debate.
Sobre digerir um assunto…
Mesmo que restasse a dúvida se Janaína Venzon teria aprovado ou não o livro de Jeferson Tenório em sua escola, há algo que fica muito claro, desde a denúncia até a sua entrevista pelo portal Gaz, que é o fato da diretora e sua equipe não saber como trabalhar a obra com os seus alunos.
Não saber trabalhar um conteúdo revela problemas na digestão desse assunto. Um celíaco, por exemplo, não consegue digerir o glúten. Se ele o ingere, vários sintomas se manifestam em direção ao desconforto. No caso dos psicanalistas e outros psicoterapeutas, se eles não são acompanhados terapeuticamente, ocorrem entraves nas sessões dos seus pacientes. Eles só poderão ir com um paciente até onde eles foram em suas próprias análises pessoais. Por isso é tão comum pessoas reclamarem que suas psicoterapias não avançam e até mesmo da sensação de que, em algum momento, elas acabam sendo analistas de seus próprios terapeutas.
Então, apesar de muitos profissionais precisarem atuar de forma imparcial em suas atividades, estão vulneráveis às suas crenças, fraquezas e incompreensões.
O real está velado?
É interessante, nessa discussão, chegarmos à seguinte conclusão: que enquanto um grupo quer escancarar, o outro prefere velar. Mas estamos falando da verdade, do real? É isso que está para ser escancarado ou velado?
A fala do jornalista Roberto Motta no programa ‘Os pingos nos is’ é, no mínimo, curiosa. Ele diz que o que está presente no livro de Tenório é algo que seus filhos não têm conhecimento. Digamos que seus filhos não acessem esse tipo de conteúdo de forma alguma através da internet, de fato, muitas famílias de classe média desconhecem a vida na periferia. Afinal, é fato que a cultura de uma para outra difere absurdamente. Mas, tendo em vista que boa parte da população brasileira – segundo o site do Ipea, 29% – se encontra nas favelas, não seria plausível que todos os brasileiros tomassem conhecimento dessa realidade, de forma a evitarem uma alienação sobre o seu próprio país?
Em termos de real, não seria o mesmo que assistir aos clássicos ‘Hotel Rwanda’ e ‘Diamante de Sangue’ e ao mais recente sucesso dos cinemas, ‘Som da Liberdade’?
A infância moderna no Brasil
Conforme já abordado no artigo O jovem contemporâneo: um sujeito sem lei?, resgatando essa intenção de proteger os jovens contra, digamos, a realidade nua e crua, em seu ‘Hello, Brasil!’, Contardo Calligaris critica a infância moderna, colocando-a como uma extensão da demanda dos pais:
Citação do livro (C. Calligaris, p. 237):
… a infância moderna – esse prolongado limbo social – foi inventada para satisfazer as novas necessidades da subjetividade adulta: particularmente, a necessidade de conquistar status pelas vias do sucesso e, portanto, de projetar em suas crianças um sonho de felicidade social nem sempre realizável ou realizado na vida do adulto.
E, trazendo as diferentes experiências sociais no Brasil, critica também a “estratificação social radical” bem como a “fraca representação comunitária” no país, que dividem o jovem moderno em:
Citação do livro (C. Calligaris, p. 238):
… filhos/as de excluídos sociais para quem, de qualquer forma, o fundamento comunitário da lei não tem valor. Eles veem na exclusão de seus pais o fracasso da comunidade… “Não reconheço a lei, mas tenho que ser feliz; então vale tudo”;
… filhos/as das classes médias que frequentemente verificam em seus pais um desprezo cínico pela comunidade… os sonhos parentais de sucesso e ascensão social está acima da lei… Então vale quase tudo;
… filhos/as das ditas elites para quem a obrigação de ser feliz pode ser acompanhada pela convicção de que os pais – e a sua classe – seriam os únicos e arbitrários donos da lei. Então vale tudo mesmo.
Exclusão e violência
Calligaris entende que, em vez de uma relação direta entre pobreza e criminalidade, o que existiria é a ligação entre criminalidade e exclusão. Ele afirma que, no Brasil, “não se sabe bem sobre que base construir uma comunidade” e questiona se é possível “fundar – na representação de todos ou quase todos – a autoridade da lei.”
Ao final de seu livro, Calligaris faz algumas propostas que poderiam ser adotadas pelo governo, no intuito de trazer soluções para os problemas por ele levantados, entre eles: “a abolição de qualquer tipo de regime de prisão especial”, que a corrupção de dinheiro público seja considerada crime hediondo – “desbanalizando” essa “violência criminosa da elite” -, “ação de policiamento de tolerância zero contra a deterioração do espaço público”, o aumento dos salários de policiais e educadores e “um eventual plano “terapêutico”, por assim dizer, da autoimagem da polícia”. E vai mais a fundo:
Citação do livro (C. Calligaris, p. 245-246 e 249):
PROPOSTA 1
… proponho que sejam impostos, como disciplina obrigatória em todo o ensino superior do país, no mínimo dois semestres de serviço comunitário… O que importa é que o contato prolongado com as margens excluídas da sociedade brasileira faça parte obrigatória da educação dos rebentos das elites. Ou seja, que não seja possível passar dos Jardins para um arranha-céu da Paulista via universidade americana sem ter passado algum tempo na zona sul profunda de São Paulo, por exemplo.
(…)
PROPOSTA 5
Estudos experimentais mostram um aumento vertiginoso dos índices de marginalidade e de criminalidade quando, em um bairro pobre, a porcentagem de habitantes de classe média é reduzida abaixo de um definido índice (5%…)… Uma comunidade fortemente estratificada deve combater a segregação habitacional para oferecer sempre a representação da mobilidade social…
Um programa deveria ser estabelecido contra a segregação do habitat.
Do conhecimento ao reconhecimento
Em suma, Calligaris defende o conhecimento em primeiro lugar. E quando se fala de conhecimento, tratamos da ciência, ou melhor, da consciência. Consciência do que existe por aí e, até mesmo, ao lado de nossas casas. Com que pessoas estou lidando? Qual é a sua realidade? Afinal, se os políticos saem da elite, como poderão saber a necessidade da população mais carente? E todos nós somos políticos em potencial, certo? Ou melhor, todos somos políticos, pois participamos de uma sociedade, temos direito de voto e possuímos vozes.
O problema é que em qualquer sociedade nem todos terão as mesmas oportunidades de se fazerem ouvir. Não falo apenas daqueles mais desfavorecidos economicamente falando, mas de todos aqueles que se sentem invisíveis ou subestimados, seja por aparentarem ou pensarem diferente, seja por constituírem grupos socialmente construídos em cima de estereótipos: negro burro, mulher fraca, nordestino preguiçoso. ‘O Avesso da Pele’ propõe olharmos para o que está por trás da carcaça do burro, do fraco, do preguiçoso; propõe um olhar para o invisível. Afinal, todos os indivíduos sentem necessidade de reconhecimento, para que a sua existência seja validada.
Convenções e o livro enquanto formador
No mais, os tais livros proibidos sempre existiram. Eles eram proibidos conforme as convenções das sociedades. Mas nunca deixaram de ser lidos se havia oportunidade. Hoje, o mesmo ocorre com blogs, vídeos, canais, filmes etc. Ficando a cargo dos pais controlar o conteúdo que seus filhos acessam, através de senhas, que os jovens acabam dando um jeito de decifrar. Assim, os pais fingem que controlam seus filhos, enquanto os filhos fingem que são controlados.
Embora os livros façam parte da formação, aumentando a capacidade cognitiva e crítica dos indivíduos, já que trazem conhecimento, não importando se é “certo” ou “errado”, não são eles que definem o sujeito. Pelo contrário, os conteúdos dos livros só poderão ser classificados como “certo”, “errado”, “apropriado”, “inapropriado”, “relevante” ou “irrelevante” a partir da formação do sujeito que, por sua vez, depende das figuras maternas, paternas e do meio em que foi criado.
Belo texto, excelente trabalho e eloquente interpretação. Parabéns!
Interessante texto!
Proporciona boa reflexao.
Masna minha perspectiva acredito que cada um ver o que quer ou o que pode. Isso independe de nivel intelectual ou de conhecimento de mundo do individuo.
Parabens! 🙂