Acontece nos filmes, acontece na vida
A série de TV britânica ‘Adolescência’ (do inglês, Adolescence) está dando o que falar nas redes sociais. Todos querem assistir enquanto psicólogos e psicanalistas se reúnem para analisar e discutir atos de violência entre crianças e adolescentes, que também têm estampado capas de jornais, inclusive no Brasil.
A notícia mais recente data do último dia 31, quando três adolescentes quebraram câmeras de vigilância da escola João de Zorzi, em Caxias do Sul, e esfaquearam uma professora, que teria reportado mau comportamento à mãe de um dos jovens no dia anterior.
Entre 2002 e 2022, o Brasil teve 35 mortos e 72 feridos, enquanto os Estados Unidos, que registram o maior número de casos do mundo, tiveram “185 mortos e 369 feridos em ataques violentos a escolas”. O que costumava ser conhecido basicamente no país norte-americano, especialmente através de documentários como ‘Tiros em Columbine’, dirigido por Michael Moore, passou a ganhar espaço em outras localidades.
Situação preocupante?
Há uma semana, comemorou-se o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência na Escola. A data foi instituída pela Lei nº 13.277, de 29 de abril de 2016, fazendo referência à tragédia ocorrida na Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo, Rio de Janeiro. Em 2011, um ex-aluno da escola “invadiu uma sala de aula e disparou contra as crianças, resultando na morte de 11 delas, antes de tirar a própria vida”.
A revista Pesquisa Fapesp apontou que, nos últimos 10 anos, o Brasil enfrenta uma “escalada nos casos de agressões na comunidade escolar”, registrando pico entre 2022 e 2023. Entre 2013 e 2023, o registro de vítimas de violência interpessoal subiu de 3,7 mil para 13,1 mil. Desde 2001, são, pelos menos, 47 vítimas fatais.
O Ministério da Educação (MEC) reconhece quatro tipos de violência que afetam a comunidade escolar. O primeiro refere-se às agressões extremas, com ataques premeditados e letais; o segundo abarca situações de violência interpessoal, envolvendo hostilidades e discriminação entre alunos e professores; e o bullying, quando ocorrem intimidações físicas, verbais ou psicológicas repetitivas. Há, ainda, a violência institucional, que engloba práticas excludentes por parte da escola, por exemplo, quando o material didático utilizado em sala de aula desconsidera questões de diversidade racial e de gênero.
De acordo com o Atlas da Violência de 2024, entre 2009 e 2019, o número de estudantes que reportaram ter sofrido bullying cresceu quase 10%. Nesse mesmo período, “a proporção de estudantes do ensino fundamental que deixaram de ir à escola por sensação de insegurança” mais do que dobrou. Segundo o economista Daniel Cerqueira do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), apesar do aprimoramento na coleta de dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), o aumento é muito acentuado.
Discursos de ódio
Para Cerqueira, a polarização política no país, iniciada em 2013, teve efeito colateral:
…declarações de figuras públicas relativizando a violência ajudaram a criar um ambiente em que discursos agressivos e intolerantes foram naturalizados, o que pode ter afetado negativamente a convivência escolar.
No final de 2023, após o pico das tragédias nas escolas, refletimos aqui a respeito das frustrações de uma sociedade moderna que acaba formando jovens fora da lei. O mau comportamento das crianças, hoje, é, tantas vezes, denegado pelos pais, que rebatem as notificações das escolas questionando conhecimento, ética e a própria formação dos professores. Aproveite para ler também E onde fica o suposto saber do professor?.
Quando os filhos se tornam um problema?
Os filhos só se tornam um problema quando já não atendem mais as expectativas dos pais, quando os pequenos já não lhes dão mais a esperança do futuro brilhante que tanto almejaram ou quando fazem coisas que afetam o bolso dos adultos. Assim, as dificuldades de aprendizagem são a “queixa central nos encaminhamentos de crianças que chegam ao psicanalista Alexandre Patrício de Almeida”.
Muitos pais procuram analistas com a expectativa de ajudar o filho a passar de ano, a melhorar a dificuldade em uma matéria. Mas não é isso que a psicanálise faz.
Essas queixas de aprendizagem estão muito relacionadas às questões emocionais. Na clínica, lidamos com o inconsciente, as emoções, conflitos internos e angústias dessa criança. Indiretamente, o tratamento surte um efeito sobre a atividade cognitiva, mas esse não é o propósito.
E a angústia de uma criança normalmente é reflexo dos conflitos internos e externos dos pais. Inclusive, sem o envolvimento dos cuidadores nas psicoterapias desses jovens, a evolução do tratamento fica absolutamente comprometida. O problema é que os adultos facilmente denegam os seus problemas ou qualquer participação que possam ter no comportamento de seus filhos. E essa questão é tão recorrente, que chega a faltar profissionais que queiram trabalhar com crianças.
Reconhecer para reparar
A psicanalista e professora titular do Departamento de Psicologia Social da USP, Belinda Mandelbaum, alega que:
Muitas vezes, a criança começa a melhorar, a se libertar de um certo sintoma, e os pais tiram da terapia. É como se a família precisasse da criança naquele lugar, de portadora do sintoma, da doença, do que não vai bem…
Enquanto de alguma maneira os pais não cuidarem de seus próprios conflitos, da sua própria história infantil, sua relação com os próprios pais, a criança não vai poder ser libertada desse lugar de portadora de um sintoma.
Os discursos agressivos e intolerantes dos pais refletem uma frustração desconhecida, que é captada pelas crianças também através das “contradições, tropeços e falhas de saber” dos adultos. E não é como se não pudéssemos falhar ou como se devêssemos ser perfeitos. Errar faz parte da vida. O que falta é nos darmos conta dos erros, dos discursos radicais, das contradições, e fazermos mais demonstrações de reparação.
Enquanto os adultos fugirem do sentimento de culpa como o diabo foge da cruz, não haverá reconhecimento pela responsabilização nem por parte dos pais nem, muito menos, dos filhos. Afinal, não se trata de culpa, mas de responsabilidade. E, numa sociedade, todo indivíduo, querendo ou não, é legalmente responsável por seus atos.