Os pets e seus heróis: da expectativa ao mito

Números alarmantes na classe profissional

No final do ano passado, uma reportagem da BBC News Brasil revelou números alarmantes a respeito da prática veterinária aqui no país e no mundo. Com a intensa domesticação de animais ao longo dos anos, os pets passaram a ocupar um lugar especial dentro do núcleo familiar. Muitos chegam, inclusive, a substituir pessoas: seja alguém que já partiu, seja alguém que nunca existiu.

Um pet é uma companhia para os momentos de solidão nessa era que demanda que estejamos constantemente investidos em algo ou alguém. Uma população que tende mais do que nunca à solidão, mas que, ao mesmo tempo, não a tolera. Gerações cada vez menos tolerantes, que suportam cada vez menos serem contrariadas, que buscam em um animal o seu ideal de ser humano. Que buscam em um animal a aceitação, o amor incondicional, a literalidade, a ausência de ambiguidade. Para que, assim, o amor não se transforme em ódio.

O Centers for Disease Control and Prevention investigou por quase 40 anos os casos de suicídios entre médicos veterinários nos Estados Unidos e descobriu que esses profissionais tinham de 2 a 3,5 vezes mais chances de fazerem a passagem ao ato, quando comparados com a população em geral. Na Austrália, o estudo foi realizado pela ONG Love Your Pet, Love Your Vet, mostrando que essa taxa subia para 4 vezes.

A pesquisa VetsSurvey de 2021 concluiu que Portugal é o país do mundo com o maior nível de estresse na área veterinária, atingindo cerca de 87% dos profissionais.

Argentina (79%), Brasil (74%), Estados Unidos (71%) e Reino Unido (70%) vieram em seguida. A média mundial ficou em 65%.

Dados do Brasil

No mundo, o Brasil é o país com o maior número de faculdades de veterinária: 515, de acordo com o MEC. O que vai muito além dos Estados Unidos (33) e da China (100), os países com as maiores quantidades de pets no mundo. Bom, aqui no Brasil, de acordo com a entrevista de diversos profissionais, além do descontentamento dos veterinários com as suas remunerações e longas jornadas, os altos índices de burnout, depressão e suicídio estão ligados à:

– prática corriqueira da eutanásia nos animais, inclusive, daqueles que não precisavam ser eutanasiados e acabam sendo por conveniência do tutor:

Os médicos veterinários no Brasil, afirmam os pesquisadores, não vêm sendo preparados durante a graduação para lidar com a morte dos pacientes, nem com as implicações morais e éticas que envolvem o assunto.

– e desgaste emocional com atendimentos, por “lidar com tutores emocionalmente abalados” que humanizam os seus animais:

“Médico de pet tem de lidar com uma clientela exigente, que vê os animais como filhos e que se comporta como pais”, diz o psiquiatra.

A morte de um “filho” animal nem sempre é encarada como uma etapa natural, ressalta Ingrid Bueno Atayde.

“Para muitos tutores, o animal não morreu porque já tinha 17 anos de idade, porque estava com diabetes ou com câncer, e sim porque o veterinário não conseguiu mantê-lo vivo”, diz Atayde.

Rei ou dejeto?

Além disso, talvez, pensando numa vida contemporânea mais prática e, portanto, tantas vezes, a busca por um animal de estimação ser baseada numa tentativa de afastar a solidão sem maiores perdas de tempo e dinheiro, muitos tutores enxergam a prática veterinária como algo da ordem do social, em que, pelo fato de alguém ter acolhido um animal da rua, espera-se que o outro também se solidarize.

Embora o animal seja visto como um filho, diz Loris, o respeito pelo veterinário não parece ser o mesmo que os pais costumam ter com um pediatra, por exemplo, e que alguns clientes são especialmente difíceis de atender porque acham que o veterinário sempre pensa no lucro acima de qualquer coisa.

E quando esse animal já não atende mais o orçamento de tempo e dinheiro que foi previamente definido para ele, deverá ser descartado. Não valendo mais nem como humano, nem como animal, mas como um objeto obsoleto. Por isso o número excessivo de eutanásias bem como de abandonos e, portanto, de animais em situação de rua. Parece que repetimos com os bichos aquilo que fazemos com a infância brasileira, onde as crianças ou são reis ou são dejetos.

Mitologia ativa

O mito do felizes-para-sempre segue operante. O mito do ganho-sem-perda, do somos-naturalmente-bons, somos-heróis ou temos-um-herói… O mito da imortalidade.

Lévi-Strauss diz que o mito ocupa o lugar “de um instrumento lógico, destinado a operar uma mediação entre a vida e a morte. Passagem difícil ao pensamento. (Mito e Psicanálise, Pág. 106)

Ou seja, como “a morte é o significante que mais nos aproxima da dimensão do real” e o real apresenta muitos furos, os mitos nos mantêm presos ao imaginário, na tentativa de tapar esses buracos.

Os deuses, de fato, estão mortos, mas sendo agora a ciência a se ocupar “das grandes questões do mundo, como a morte, o envelhecimento etc”, a psicanalista e professora Maria Auxiliadora Bahia, no livro ‘Mito e Psicanálise’, questiona se a ciência poderia estar criando novos mitos. Ela afirma que “ao expulsar o sistema mitológico, a própria razão se converte em mito” e que muitos autores acreditam que “a ideologia vai camuflar-se em ciência” (para alguns, “uma crença inquestionável”, de onde “se espera toda explicação e até mesmo a salvação”).

Assim, instala-se o caos: médicos veterinários vistos como heróis falhos, inclusive, por eles mesmos, e uma ciência que jura acabar com a solidão, com a morte e tudo aquilo que mais nos atormenta. Como diria Cazuza:

Meus heróis morreram de overdose

Meus inimigos estão no poder

Ideologia, eu quero uma pra viver

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