Crise psíquica no Brasil e no mundo

Sintomas

Não é de hoje que o Brasil lidera o número de casos de ansiedade no mundo. Também não é de hoje a crise de opióides que os Estados Unidos enfrentam a duras penas. Ou que a toxicomania tenha crescido globalmente de forma ininterrupta.

Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas 2024 do UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), entre 2012 e 2022, houve um aumento de 20% de pessoas que usaram drogas.

A canábis continua a ser a droga mais consumida em todo o mundo (228 milhões de usuários), seguida dos opióides (60 milhões), das anfetaminas (30 milhões), da cocaína (23 milhões) e do ecstasy (20 milhões de usuários).

E o que dizer dos casos de autismos que crescem exponencialmente por entre crianças e adultos? TEA (Transtorno do Espectro Autista), TOD (Transtorno Opositor Desafiador), TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Com e sem fator neurobiológico, com e sem diagnóstico, com e sem laudo. Uma busca angustiante pelo encaixe, pela sensação de pertencimento, pelo reconhecimento dentro de uma sociedade.

O sujeito social

Para se ter uma ideia, o DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) saltou de 128 categorias de sofrimento psíquico em 1952 para 541 em 2013. O filósofo e psicanalista brasileiro Vladimir Safatle explica em artigo à Revista Cult de novembro deste ano:

Não havíamos negligenciado por séculos 413 categorias clínicas. Antes, demos autorização cada vez mais extensa para a intervenção médica em meandros da vida que até então não eram vistos como campos possíveis de comportamento patológico.

A sociedade sempre “exigiu dos sujeitos um enorme esforço de recalque e restrição para serem sujeitos sociais capazes de desempenho e reconhecimento”. Então, chegamos em uma era digital, em que o capitalismo, na forma de neoliberalismo, exige um tal “olhar de dono” daquele que não está nessa posição nem ganha para isso. E, ainda, prometendo-lhe a recompensa de um reconhecimento que nunca se concretiza. Ao menos, não na visão do não-dono.

O processo de socialização se torna cada vez mais controverso, porque caminha para o individualismo. Todos querem “empreender”, ser donos de si, de seu próprio Eu. Mas, segundo Safatle, de um Eu controlado pelo rendimento, pela performance, pelo desempenho, pela contabilidade, pelo “interesse quantificável em relação à sua própria pessoa”. Para ele, o modelo de relação empreendedor é uma “extensão de uma noção de liberdade como propriedade de si que explode toda possibilidade de constituição de um corpo social baseado na solidariedade”.

Capitalismo X solidariedade

Mas uma solidariedade que não tem a ver com ajudar os “necessitados”. Afinal, ajudar alguém que não tem nada a ter alguma coisa mantem aquele que ajuda na posição confortável de poder e o que está recebendo a ajuda em uma posição inferior. Ou seja, não há mudança na estrutura social. A solidariedade de Safatle tem a ver com abrir mão do seu poder, do seu controle pelo rendimento, pelo desempenho ou pelo interesse por si mesmo em prol de uma mudança efetiva na vida do outro. Independentemente de envolver dinheiro ou não. Mas que, venhamos e convenhamos, geralmente, envolve.

Não dá pra negar que os regimes socialistas projetados por Marx são muito mais platônicos do que exequíveis. Estão aí Venezuela, Argentina e China, por exemplo, para contar a história. Países ricos com populações extremamente miseráveis. Claro, também envolvidos em governos ditatoriais. Mas, tudo isso, pra falar que não importa se o governo é de esquerda ou de direita, se não houver intenção real de coletivo, se não houver solidariedade. É preciso lembrar que um país funciona como uma empresa: a cultura começa de cima pra baixo. Afinal, é preciso proporcionar estrutura para sustentar as mudanças.

A questão é: quem quer mudança? Será que os Estados e sociedades estão interessadas em desbancar o selvagem sistema capitalista de hoje, que traz tanto sofrimento psíquico e físico às pessoas e, ao mesmo tempo, tanto gozo? Safatle questiona no início de seu artigo se os tais transtornos psiquiátricos seriam “expressão de espécies naturais descobertas pelo desenvolvimento técnico do saber médico”, esclarecendo que:

“Espécie natural” é uma espécie correspondente ao agrupamento de fatos e elementos que refletiria a estrutura do mundo natural, em vez de refletir os sistemas de interesse e ações dos seres humanos.

Afinal, qual o papel da medicina?

Ou seja, ele provoca a medicina, questionando se ela não estaria sendo conivente com o sistema capitalista ao criar transtornos e tratamentos – fins que justificam os meios -, uma vez que esse sistema faz também desses médicos e farmacêuticos ainda mais poderosos. Faça um teste: se você ainda não o fez, tente agendar uma consulta com qualquer psiquiatra do seu plano de saúde. No melhor dos cenários, você vai conseguir para daqui a três ou quatro meses. Mas a realidade é que muitos psiquiatras estão fechando suas agendas para novos pacientes de plano de saúde. Então, nesse caso, questione o valor da consulta particular.

O que antes era apenas um problema do SUS está agora migrando para os planos. E os tratamentos psiquiátricos normalmente são tão dispendiosos que, tantas vezes, acabam intensificando o sintoma do paciente e entrando para as causas do próprio tratamento. Mas, no fim das contas, os tratamentos psiquiátricos são sempre justificados e normalizados, como se não houvesse mais nada a ser feito, a não ser se submeter à indústria. Afinal, como diria Safatle:

Quanto maior a extensão da possibilidade de diagnósticos clínicos, menor a chance de mobilizar o sofrimento psíquico como fundamento para a revolta social.

Compartilhar

Deixe um comentário