Barbáries pré-eleições
A menos de quinze dias das eleições, temos a impressão de que as coisas já foram mais pacíficas, não? Debates inteiros de agressões verbais, provocações, cadeiradas, abstenção de candidatos em massa por, talvez, não terem certeza se responderiam por si, nesse campo que já era de batalhas, mas que não costumava haver feridos.
Esse seria um retorno aos nossos tempos mais bárbaros? Onde uma vida praticamente não tinha valor? Na qual valores de uma sociedade, como moral e ética, passavam longe de existir? Na qual a justiça se resumia ao olho por olho, dente por dente?
E lá estão os candidatos, todos humanos, todos suspeitos. E ninguém escapa de ser enquadrado em algum rolo. Do pequeno ao absurdo. E, ainda, na era digital, que pode escancarar desde a verdade às distorções. Mas, ainda, num país corrupto, onde se compram pessoas até por migalhas, fazendo, muitas vezes, com que a verdade desapareça ou fique muito bem escondida.
Assim, o dedo indicador é o protagonista do debate. Um acusa o outro e o outro acusa um. E, no meio da confusão, quando uma pergunta é feita, ela não é respondida. Em vez disso, o candidato utiliza o seu tempo de aparição para seguir acusando, para se defender da acusação de outro candidato ou para falar de uma coisa outra, que ele julga ser mais favorável a si. A si, não ao povo. Não se tratam de diálogos, mas de monólogos. Escapa-se à linha de raciocínio, à discussão organizada que sugere a palavra “debate”. Aproximando-se mais da expressão coloquial “bate-boca”.
Política do Pão e Circo
E é disso que um dos candidatos afirma que o povo gosta: da confusão, do bate-boca, da incoerência. Será que é mesmo da política de pão e circo que o povo gosta?
A politica do Pão e Circo foi criada no Império Romano, por Otávio Augusto (27 a.C – 14 d.C). O objetivo era auxiliar os líderes a acalmar a população que poderia se revoltar contra o governo, diante da expansão de seu território. Ou seja, tratava-se de uma política voltada para a manutenção da ordem do império.
Panem et circenses é o termo em latim atribuído ao humorista e poeta Juvenal (final do século I), que dizia respeito à falta de informação e de interesse da população romana pela política. Em vez disso, o povo voltava toda a sua atenção para espetáculos públicos, como música, teatro, circo e arenas com gladiadores. E, claro, o básico para a sua subsistência não poderia faltar: pão e cereais, oferecidos a baixo custo ou através de banquetes públicos. Assim, os possíveis motivos de revolta de uma população eram considerados a fome e o tédio. Os festejos públicos, além de preencher o tempo ocioso, contribuíam para aumentar a popularidade do imperador. Para saber mais, acesse O que foi a política do Pão e Circo?.
Mais do mesmo
Então, aqui estamos, vinte séculos depois, às vésperas das eleições para prefeitos e vereadores, com candidatos que, por um voto, pagam almoço, dão carona e emprestam até a casa de praia para pessoas que eles mal conhecem. Mesmo que hoje haja regras e que essas atitudes os enquadrem fora delas. O fato é que de nada valem as regras se são desconhecidas pela população.
Então, a política do Pão e Circo sobrevive. Claro, com uma outra roupagem. Mas me pergunto se é por gosto ou por desinteresse. Afinal, não é isso que o povo conhece: as incoerências dos governos, que, por ingerência, remediam os problemas com ações simplistas, caras e ineficazes – como as taxações – e, para compensar a facada, por exemplo, criam programas de mobilidade estudantil e acadêmica que acabam excitando todas as classes?
Ciência sem fronteiras
O Programa Ciência Sem Fronteiras (CsF) foi criado em 2011, para levar estudantes brasileiros ao exterior, com o objetivo de “promover a internacionalização da ciência brasileira, incentivar pesquisa inovadora e aumentar a competitividade das empresas nacionais”.
Um artigo baseado na tese de doutorado do economista Otávio Conceição, da Fundação Getúlio Vargas, incluindo a entrevista de 19 mil estudantes que participaram do programa, mostrou que o Ciência Sem Fronteiras foi um fracasso. Depois das cerca de 100 mil bolsas concedidas e dos quase US$ 3 bilhões investidos, o estudo mostrou que “as metas não foram atingidas em três frentes: descontinuidade dos estudos na pós-graduação no Brasil, baixa inserção no mercado como funcionários, e baixa iniciativa como novos empreendedores”.
Além disso, o programa apresentou falhas de forma sistêmica. Para começar, o Capes e o CNPq tiveram que implementá-lo às pressas – “a lista de objetivos do programa foi instituída alguns meses após o anúncio do CsF, assim como a definição de áreas prioritárias contempladas pelo programa foi feita um ano após o seu início”. Também “não foram encontrados indícios de que tenha havido discussão com os principais stakeholders antes do anúncio do programa, bem como entre o seu anúncio e sua criação”.
…os estudos sobre o programa e a pesquisa de campo na Unicamp ( GRANJA, 2018 ) também sugeriram que o programa foi instaurado pelo governo sem ter sido discutido com as instituições de Ensino Superior brasileiras, o que gerou dificuldades na fase de implementação do programa (BIDO, 2015; CUNHA, 2016 ; VELHO; RAMOS, 2014 ). Assim, o programa seguiu uma abordagem top-down, não envolvendo, em sua formulação, os principais atores relacionados à internacionalização do Ensino Superior brasileiro (instituições de Ensino Superior e agências de fomento), que foram envolvidos no programa somente na etapa seguinte.
Das falhas de execução à ausência de resultados esperados
Não houve emissão de relatórios por parte do Comitê de Acompanhamento e Assessoramento (CAA) e o Comitê Executivo (CE), que deveria estabelecer critérios de seleção de bolsistas, não previu, por exemplo, “a falta de proficiência dos estudantes”, que “fez com que o CsF despendesse R$ 976 milhões com cursos de idiomas ministrados antes e durante a vigência das bolsas”, inclusive em território internacional, em vez de promover “estratégias de internacionalização “em casa””. Ou seja, em vez de investir na proficiência em línguas ainda em território nacional, o que inclusive já é ofertado nas próprias universidades federais como disciplinas facultativas.
Resultado disso é que “diversas avaliações do programa nas instituições de Ensino Superior mencionaram que houve dificuldades de aprendizado e aproveitamento da experiência no exterior decorrentes de deficiências no idioma estrangeiro”.
Enfim, além de não ter previsto atividades de pesquisa no Brasil ou no exterior e de ter utilizado recursos públicos de forma indevida, diversos outros problemas estão contemplados no artigo O programa Ciência sem Fronteiras e a falha sistêmica no ciclo de políticas públicas.
À época, o programa foi conhecido, por muitos que viam de perto o que estava acontecendo, como Bolsa Férias ou Bolsa Farra. Afinal, fala-se numa média de US$ 27,2 mil gastos por estudante, o que corresponderia a cinco vezes o seu custo na universidade pública. Sem falar que não havia nenhuma meta a se cumprir no contrato.
Testemunho
Eu sou uma das pessoas contempladas pelo Capes em 2012. Todos os problemas citados aqui, provenientes do artigo, foram evidenciados também por mim à época. A começar pelo título do programa que foi alterado quando eu já me encontrava fora do Brasil. Ou seja, fui selecionada por um programa da Capes que já estava em curso há anos, mas encerrei o meu contrato com o Ciência Sem Fronteiras.
Mesmo assim, o programa que me selecionou também apresentava fragilidades como as descritas anteriormente. Os critérios de seleção, por exemplo, só funcionavam quando o número de candidatos ultrapassava o número de bolsas disponíveis no ano. A justificativa dada pelos selecionadores do processo era a de que o curso poderia perder as bolsas no ano seguinte, caso não as aproveitasse no ano de vigência. Num querer dizer: “utilize-as de qualquer forma, apenas utilize-as”.
Com o valor da bolsa, era possível fazer várias viagens a lazer e conhecer outros países. Não era incomum que as festas nos dias de semana impedissem um ou outro brasileiro de comparecer às aulas no dia seguinte. Bom, não que isso não pudesse acontecer com outros estudantes ou que não fizesse parte do pensamento comum sobre a vida universitária. Mas o fato é que nós, brasileiros, éramos vistos com total descredibilidade pelos nativos e pela instituição que nos recebia, afinal, nosso único compromisso firmado era estar lá.
Um retorno ao familiar
Trago o exemplo do Ciência Sem Fronteiras porque foi algo que eu experienciei, o que faz de mim sua testemunha. Entendo que o programa é positivo em diversos aspectos. Pelo menos, foi para mim. No entanto, existem muitas evidências que colocam o programa na linha da política do Pão e Circo. Isso porque apesar de positivo do ponto de vista pessoal, quando a gente tenta aplicar os seus efeitos na sociedade brasileira, os resultados não são significativos. Justamente porque não houve planejamento nem fiscalização, pontos básicos de todo e qualquer projeto público.
Afinal, quando o dinheiro vem do bolso da população, todos devem ser beneficiados direta ou indiretamente. Enfim, um programa que brilha os olhos, que compra votos, mas que, além de ser improdutivo, é contraproducente, no sentido de que os gastos indevidos ainda são revertidos em impostos a serem pagos pelo próprio povo.
Então, é isso que o povo brasileiro sempre teve: grandes investimentos em universidades e um ensino básico precário, esquecido. Assim, retorno à questão primeira: será que é o que o povo gosta ou será que é só isso que o povo conhece, porque é só isso que nos oferecem, entra governo, sai governo?
Na Psicanálise, existe uma ideia de que tendemos a recorrer àquilo que é familiar: seja ao útero aconchegante e seguro de nossas mães, seja aos padrões, crenças e hábitos daqueles que cuidaram de nós. Independentemente de nos serem saudáveis ou não. E por que não tenderíamos a recorrer ao jogo político daqueles que, desde sempre, dizem cuidar bem de nosso país e de nosso dinheiro, independentemente do que isso signifique? Aproveite para ler também Presos numa cultura de exploração.