Escassez de profissionais no setor público
O texto da semana passada, O CAPS, a loucura e o autista, gerou algumas repercussões interessantes. Minha mãe, arteterapeuta e aposentada pelo serviço público, trabalhava com usuários do CAPS nos centros de convivência. Ela afirmou que o número de psicólogos disponíveis no setor público era extremamente escasso. E, então, começamos uma discussão sobre essa escassez.
Não é que faltem psicólogos no mercado de trabalho. Mas faltam profissionais que estejam dispostos a trabalhar recebendo o valor que o setor público oferece. A discussão do se é muito ou se é pouco não cabe aqui. Afinal, o dinheiro também é uma questão subjetiva. Para alguns, será muito, para outros, pouco. E ainda haverá quem defenda que é suficiente.
Remuneração e ascensão social
O que é fato no Brasil é que os salários no setor público usualmente são superiores aos oferecidos no setor privado. O que, a priori, parece-me estranho. Afinal, o Estado não produz, quem produz é o privado. Isso significa que o servidor deveria ganhar menos? Não necessariamente. Mas, tendo em vista a baixa qualidade de vida da maior parte da população, que é o privado quem emprega, significa, sim, que as empresas deveriam melhorar não somente os salários, mas – fazendo um longo parêntese – as suas políticas de remuneração. Afinal, “benefícios” como o prêmio assiduidade é uma forma de dizer ao funcionário que não lhe é permitido adoecer, reforçando a obsessão pelo trabalho e promovendo o mal-estar. Pessoas acabam indo trabalhar mesmo doentes, ficando cada vez mais adoecidas. E, muitas vezes, por causa de cem reais mensais. Que para alguns, é pouco, mas, para muitos, é bastante. Ou é apenas uma ilusão. Uma ligeira sensação de poder, mas que logo se desfaz, quando se percebe que a ascensão social nunca vem.
Bom, isso seria assunto para um outro texto. Mas o que quero extrair desse raciocínio é o quanto que a remuneração é relativa de um sujeito para outro e quão importante é a ascensão social para qualquer indivíduo. Porque ascender socialmente, numa sociedade capitalista, significa ser reconhecido, inclusive, no âmbito político. Aproveite para ler também Por que fazem corpo mole? Entendendo a dialética do reconhecimento.
Escassez também no privado
Assim, podemos falar da escassez dos psicólogos mesmo nos planos de saúde – setor privado. No meu plano, por exemplo, apenas uma clínica está disponível para atendimento – que inclusive fica em outra cidade – e com duas únicas psicólogas. O custo da sessão para o usuário, nesse plano de coparticipação, é de 18 reais e o tempo de sessão é de 30 minutos. O que se faz em sessões fixas de 30 minutos? Não muito. Perde-se muito. Perde-se a fluidez, a linha de raciocínio, as associações. A própria psicóloga do plano concordou que o tempo não é suficiente. Mas, então, por que propor 30 minutos? Porque é o que ela está disposta a oferecer pelo valor que o plano paga. Mesmo que isso coloque em risco a eficácia do seu tratamento.
Então, mesmo ultrapassando a “linha da pobreza” e de reconhecimento político – aquele que reconhece o indivíduo em sua existência e necessidades, sendo essas devidamente amparadas -, ficamos presos nesse discurso do “mais, cada vez mais” e, dificilmente, contentamo-nos com o que ganhamos. Principalmente aqueles que estão nas classes mais altas da sociedade. Afinal, se não fosse assim, os abismos sociais não seriam assim tão abissais.
As demandas do capitalismo versus o serviço público
Bom, existem vários problemas que derivam desse desejo desenfreado de atender as demandas do capitalismo, o que foi abordado também em Ansiedade: Por que o Brasil lidera o número de casos?. Mas, voltando, agora, para as políticas públicas, é fundamental entender que o público – tentando, aqui, afastar uma perspectiva romântica – precisa ser visto com outros olhos. O público, acima de qualquer coisa, diz respeito ao coletivo, às comunidades. E, além de precisar se encaixar nas contas públicas, precisaria contar com um desejo que vai além do capitalismo, que vai além das satisfações e realizações pessoais.
Apesar de uma origem remota na Grécia, a noção de serviço público só foi tomar corpo na França, entre os séculos XIX e XX. A diferença é que, em Atenas, o serviço público era prestado “pelos detentores de grandes fortunas em forma de imposição honrosa, e não pelo poder organizado em forma de Estado”, escreve Monica Spezia Justen em sua dissertação de mestrado pelo curso de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal do Paraná.
O surgimento da noção de serviço público na França tem significativa importância no cenário social, político e econômico desse país. Antes de aparecer como conceito meramente jurídico, inserido no direito administrativo, ele representou um marco no processo de mutação do Estado, propriamente dito. CHEVALLIER destaca, nesse sentido, que o serviço público tem status de verdadeiro mito na história social da França, que está vinculado aos fundamentos do Estado, além de representar um elemento de coesão social.
Relação com o dinheiro e com a ideologia
Justen afirma, ainda, que “O discurso que acompanhou o tema de serviço público desde seu surgimento sempre se caracterizou por um forte viés político e ideológico”. Mas, tendo estudado o tema também em outros países, diz que esses outros caminhos que conduziram a implementação do serviço público não possuem uma doutrina tão desenvolvida quanto na nação francesa.
Claro que o caminho seguido no Brasil fala do povo brasileiro e da sua história. Fala de uma colonização de exploração extrativista. De uma terra e um povo extremamente explorados. E, portanto, de um povo que explora. Assim, tanto no público quanto no privado, pensando também nos benefícios e malefícios da era digital, revela-se a forma como esse povo se relaciona com o dinheiro e o poder. Fica, então, a pergunta no ar: será possível um dia, aqui no Brasil, concretizarmos em todas as esferas a ideologia de um serviço público que promova de fato a coesão social?