Relato sobre Jujuba
O caso Jujuba é um relato psicoterapêutico real dessa criança sob o carinhoso pseudônimo Jujuba. Talvez, fazendo referência aos seus cabelos, elemento central nessa trama existencial. Jujuba é uma menina negra de 9 anos de idade, de classe média, residente do estado do Rio de Janeiro. Sua avó materna a leva até à nova psicóloga, depois de alguns episódios que findaram em internações hospitalares.
Jujuba comeu pasta de dente, jogou água sanitária em seu próprio corpo, bebeu álcool e ansiava por produtos de limpeza no intuito de remover a cor de sua pele. Nas sessões de terapia, ela alegava que alguns colegas de classe “implicavam com o seu cabelo, com seu nariz, boca, tom de pele e outros aspectos físicos de seu corpo”. Quando reclamava para a professora, Jujuba era negligenciada em seu sofrimento, pois ela nada fazia.
Assim, para sobreviver, Jujuba precisou encontrar maneiras de lidar com esse sofrimento. Uma delas eram as tentativas de reparar características físicas que nada tinham para ser reparadas. A outra delas era a prática da violência contra aqueles que a faziam sentir-se humilhada. Rebaixada a uma posição a que Jujuba sabia que não pertencia. Dessa forma, ela se tornava agressiva e ao pedir ajuda, a professora retrucava: “se continuar batendo nas coleguinhas assim, não vai poder reclamar quando for xingada. O que você quer, menina? Você é preta mesmo.”
Preta sinônimo de feia?
Mesmo em meio àqueles de seu próprio sangue, Jujuba não experienciava situações muito diferentes daquelas na escola. Uma vez, por acidente, ela deixou cair suco no tapete da tia, que, tomada de cólera, respondeu: “você já é preta, nem parece minha sobrinha, e ainda fica assim, com essa falta de educação”. Ao que o caso indica, Jujuba nasceu em uma família multirracial. Tendo perdido recentemente a sua mãe negra – talvez sua maior referência da cultura afro entre os familiares de sua convivência – e sendo bombardeada de desagradáveis comentários sobre a sua própria aparência, a percepção de Jujuba sobre si mesma não poderia ser das melhores.
Jujuba, então, “se achava feia porque era negra e de cabelo crespo”. Frequentando lugares de maioria branca e livres de diversidades culturais, a referência de Jujuba era a Europa e, portanto, a única saída possível até então era se tornar branca. Mas eis que uma identificação e um manejo sensível de sua nova psicóloga negra e crespa mudam aquele destino tão lamentavelmente branco.
O delírio do submundo
Sendo negra e tendo abraçado, de fato, a cultura afro, a nova psicóloga de Jujuba tinha não somente psique como ferramentas para sustentar a transferência com a pequena. Jujuba foi finalmente apresentada às histórias do submundo, à cultura africana, que a sociedade brasileira faz questão de apagar, esconder, como se fosse pecado ou irrelevante. No entanto, numa sociedade em que mais da metade da população é composta por pardos e negros declarados, quantas Jujubas serão necessárias se internarem ou transformarem seus cabelos e narizes, apenas para que todos finjamos que a supremacia é branca?
O que o caso Jujuba pode nos ensinar? Que professores e psicoterapeutas precisam ser urgentemente reciclados? Que a educação necessita de sérias reformas para que novos pais e políticos sejam formados cidadãos atuantes em uma democracia mais representativa? Ou que apenas semelhantes podem se ajudar? E que o racismo não passa de uma fábula, ou melhor, um delírio?
A lei
Para os desavisados, a pluralidade étnica, cultural e religiosa no Brasil, hoje é garantida pela Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, “que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todas as escolas publicas e particulares do Ensino Fundamental até o Ensino Médio”.
Eis o parágrafo primeiro:
O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
Bem como o parágrafo segundo:
Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
O fantasma da lei
Embora já possua mais de 16 anos, muitos são os desafios na implementação dessa lei: falta de formação adequada – professores que “não possuem conhecimento suficiente nas culturas indígena e afro-brasileira” -, “resistência e preconceito por parte de alguns segmentos da sociedade” e a falta de materiais didáticos.
Palavras da psicóloga de Jujuba:
A falta de materiais didáticos que tragam imagens positivas do negro e do índio e que não demonizem a suas heranças religiosas demonstra de maneira consistente a discriminação sofrida por essas crianças na escola.
Apesar dos desafios, todos sabemos que é possível. E não só possível, é necessário e constitucional. Em artigo da IMAP, alguns pontos são levantados para facilitar a adequação das escolas à Lei 11.645/2008. São elas:
- “Formação continuada: é necessário incentivar e promover a formação continuada dos professores, oferecendo cursos e capacitações que abordem as temáticas indígena e afro-brasileira.”
- “Parcerias com a comunidade: as escolas também devem buscar parcerias com comunidades indígenas, quilombolas e africanas, envolvendo-as no processo educativo. Essa troca de experiências e conhecimentos enriquece o aprendizado dos alunos e fortalece os laços com as diferentes culturas presentes no país.”
- “Recursos tecnológicos: os recursos tecnológicos digitais permitem a pesquisa em diferentes fontes e disponibilizam materiais ricos e adequados à lei. Esses recursos devem estar disponíveis para os professores e alunos, facilitando a sua utilização em sala de aula.”
Além dessas, podemos pensar na aquisição de livros que tragam a criança negra como protagonista, como Bruna e a galinha D’angola; Contos Africanos; Adamastor, o Pangaré; Menina bonita do laço de fita; A semente que veio da África; Chuva de manga. Bem como na adoção de referências a intelectuais negros que trazem tanta contribuição à humanidade: Frantz Fanon, Grada Kilomba, Neusa Santos Souza, Cida Bento, Bell Hooks, Isildinha Baptista Nogueira, Ignacio Augusto Paim Filho, Augusto Maschke Paim.
História, verdade, escolha
Conhecer a história do Brasil na integra não se trata apenas de inclusão. Não se trata de ser bom ou de deixar de ser mau. Não é sobre ser ou não ser supremo, ser ou não ser ativista. Trata-se, sim, de tomar consciência da verdade, de nos conhecermos e reconhecermos. De gerar a possibilidade de escolha. Porque a escolha só é possível a partir do conhecimento. Fora disso, estamos reduzidos e presos à crença da certeza.
O caso Jujuba foi escrito pela especialista em Psicologia Clínica, Marta Velasque Ribeiro. Está no livro Casos Clínicos 2: Infantil, organizado pela professora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro, Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo, a partir da supervisão do atendimento clínico.
Aproveite para ler também O negro e o branco no prevalecer-se da moral.