Solidariedade, fraternidade e segregação: eterna luta de raças

Solidariedade

O que seria da solidariedade, essa atitude baseada na identificação com o nosso semelhante na diferença, se só conseguíssemos nos solidarizar com quem vive as mesmas experiências que nós?

A questão colocada pela psicanalista, jornalista e escritora Maria Rita Kehl em seu texto ‘Lugar de “cale-se”!’, na Revista Fórum, pôs-me a pensar. É uma reflexão muito complexa, porque a solidariedade é algo que surge a partir de uma identificação. Se não de algo que você já viveu, é algo em que você se colocou no lugar, imaginou-se nele, e teve pena de si mesmo. Por isso existem tantos contribuintes para instituições de idosos, deficientes, doentes, e também é o caso, mais recente, das ajudas aos desabrigados das enchentes no Rio Grande do Sul. Afinal, quem quer perder algo que suou tanto para conseguir?

A questão é que se colocar no lugar do outro, quando você nunca esteve nele, é, frequentemente, uma furada. Aproveite para ler também O que querem de mim?!.

Nos lares dos idosos, não faltam mantimentos, mas falta atenção, um olhar de cuidado, especialmente dos familiares, que tantas vezes os abandonam. Para os deficientes, não faltam contribuições para as vaquinhas virtuais, em compensação, falta estrutura para inclui-los na sociedade, tanto por parte do poder público quanto do privado. Para os doentes, não faltam rifas para pagar tratamentos, por outro lado, pouco se faz pela prevenção. Para os desabrigados das enchentes, não faltaram colchões e refeições, mas faltou quem impedisse a alta dos aluguéis nos lugares mais seguros das cidades ou quem até abaixasse os seus preços nesses locais, para que eles pudessem sair dos abrigos e voltar as suas vidas normais.

Quase um ano se passou desde as enchentes e ainda há pessoas em abrigos. Voluntários aguardam revoltados pela ajuda do governo. Eles acham que nada mais podem fazer.

Fraternidade

No seu ‘Seminário Livro 17: o avesso da psicanálise’ (p.120-121), Jacques Lacan professa:

A energia que empregamos em sermos todos irmãos prova bem evidentemente que não o somos. Mesmo com nosso irmão consanguíneo, nada nos prova que somos seu irmão… Essa obstinação com a fraternidade, sem contar o resto, a liberdade e a igualdade, é coisa ridícula, que seria conveniente captar o que recobre.

Só conheço uma única origem da fraternidade, é a segregação… na sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação, e a fraternidade em primeiro lugar.

…se não é por estarmos isolados juntos, isolados do resto… e fingir que isto não é verdade deve ocasionar forçosamente alguns inconvenientes.

No Brasil, os movimentos identitários, apesar de pedir direitos a grupos específicos, cultivam essa ideia de que todos temos que ser irmãos. E todos querem ser irmãos dos brancos. O que, por efeito colateral, acaba reforçando o embranquecimento e, portanto, a supremacia branca, colocando as demais raças como rechaçadas, indesejadas, e, por consequência, descreditadas. A fraternidade, então, seria uma faca de dois gumes? Lacan estaria certo ao dizer que a fraternidade levaria à segregação e vice-versa?

Segregação

A minha descendência é mestiça. Possuo traços do branco, do negro e indígena. Considero-me parda. No entanto, a minha pele é clara, sou classe média e viajada. Por causa disso, fico no limbo: entre os meus colegas identitaristas, sou branca, e entre os meus amigos, também sou branca. Quero me assumir em uma outra raça, mas não me deixam. Nem os “eugenistas” nem os identitaristas. Às vezes, parece que os últimos trabalham para os primeiros e que, no final das contas, todos contribuem para a supremacia branca, inclusive os negros.

É provável que se coloquem no meu lugar… Os “eugenistas”, que acreditam que ser culto é ser branco e vice-versa, e os identitaristas, que, se pudessem escolher, escolheriam ser brancos..? É bem provável.

A luta contra o racismo, especialmente no Brasil, parece-me muito atrelada a compensações, indenizações e atenuações, ou seja, ações que acabam colocando as raças não brancas em posição de “coitadismo”. Ou como diria Kehl:

Embora seja importante reconhecer a dignidade da condição de quem é vítima de alguma opressão – econômica, racial, sexual – não há motivos para acreditar que os oprimidos sejam santos.

Dívida eterna

W.E.B Du Bois, pensador negro norte-americano, cujo nome é colocado ao lado de figuras como Karl Marx e Max Weber, conceituou o termo “salário público e psicológico da branquitude” em sua obra de 1935, ‘Reconstrução negra na América’ (em inglês, Black Reconstruction in America). Presume-se, então, que o branco, pelo simples fato de ser branco, receba um salário psíquico, que as demais raças não receberiam, o que as colocariam em desvantagem no mundo desde o seu nascimento.

Dessa ideia, parte a noção de uma dívida que os brancos, ao nascerem, já teriam para com os negros. No Brasil, a essa dívida, somar-se-ia o apoio que os ex-escravos nunca receberam do Estado. Diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos, em que negros conquistaram terras e poder político. O que acabou promovendo a revolta dos brancos, culminando, assim, na campanha sangrenta, por exemplo, da Ku Klux Klan.

Bom, o fato é que, nos Estados Unidos, apesar do racismo, o movimento garveista permitiu a ascensão não somente dos negros, mas também dos indígenas. Ascensões que começam de dentro para fora: primeiro entre semelhantes e, por consequência, em relação a todo o resto.

Quando assistimos aos filmes e séries norte-americanos, é possível evidenciar o forte apoio dos negros às comunidades negras; um consumo exacerbado de produtos e serviços afro-americanos que resultam em: artistas negros reconhecidos nacional e internacionalmente, mais negros em cargos políticos e em nível gerencial, mais negros nas universidades e nas escolas, bairros negros, baladas negras, escritórios compostos apenas por profissionais negros, programas de televisão para negros e feitos por negros.

As gírias são mantidas pelas comunidades negras, seja pobre ou rica. Parece existir um apego à cultura afro-americana, um orgulho, que acaba gerando uma certa distância com o branco. Uma fraternidade negra, que implica uma segregação. Mas uma segregação consciente. Talvez, por isso, como disse o sociólogo e um dos pioneiros nos estudos sobre relações raciais no país Eduardo de Oliveira e Oliveira, em seu texto ‘O mulato, um obstáculo epistemológico’:

…nos Estados Unidos, os descendentes de negros são considerados também negros.

(…)

O mulato racial existiu e existe tanto no Brasil como nos Estados Unidos. Mas o mulato social apenas no Brasil.

Eterna luta de raças

Du Bois chegou a flertar com a “tese do embranquecimento” liderada pelo médico João Batista de Lacerda, aqui no país, imaginando que “as raças desapareceriam, fundindo-se num caldeirão comum de humanidade” (Revista Cult, edição de fevereiro de 2025). Porém, ele logo se deu conta de que:

na América do Sul, há muito tempo fingimos ver uma solução possível na fusão gradual de brancos, índios e negros. Essa fusão não representa nenhuma diminuição de poder e prestígio dos brancos em relação aos índios, negros e mestiços; mas, sim, uma inclusão no chamado grupo branco de considerável sangue escuro, enquanto ao mesmo tempo, mantém a barreira social, a exploração econômica e a privação política de direitos dos negros.

É claro que, além da falta do Estado para com a população de ex-escravos, a história do Brasil é muito mais recente do que a história americana. Com colonizações e colonizadores diferentes, esses países tiveram diferentes rumos. Mas há algo em comum entre eles, que insiste em existir: o racismo. O que não é “privilégio” apenas destes…

Segue o julgamento pela cor de pele, pela ideia de raça superior. Seja dos brancos em relação aos negros, ao subjugá-los, seja dos negros em relação aos brancos, ao endividá-los.

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