A complexa solução das cracolândias e suas políticas de prevenção

Solução na Alemanha?

Matéria da BBC News da semana passada traz os problemas e tentativas de solução da “cracolândia” alemã, localizada em Frankfurt. A administração local divulga que são cerca de 350 usuários de drogas circulando diariamente pelas ruas ao redor da “principal estação ferroviária do centro financeiro alemão”.

Assim como no Brasil e nos Estados Unidos – veja em Acontece nos filmes, acontece na vida: toxicomania -, as autoridades alemãs têm encontrado muitas dificuldades para chegar a uma solução eficiente. O chefe do Departamento de Drogas de Frankfurt, Artur Schroers afirma:

Nunca antes tanta cocaína foi produzida no mundo como hoje, nunca antes tanta foi lançada no mercado, por preços comparativamente baixos e com qualidade quase pura.

The Frankfurt Way (ou O Caminho de Frankfurt) é uma política de enfrentamento adotada em 1990 na Alemanha, em que se concilia “a repressão ao tráfico de drogas ilícitas com um forte investimento em serviços sociais e de saúde para os usuários”.

O sistema de suporte construído contava com uma ampla rede de médicos e psiquiatras disponíveis dia e noite, construção de abrigos, acomodações de emergência e leitos de descanso diurno, fornecimento de suprimentos de higiene, alimentação, terapia e auxílio para a busca de emprego, além da instalação de lounges e cafés noturnos nas ruas onde o consumo se concentrava.

Dentro desse modelo, estão as salas supervisionadas, em que os usuários de drogas podem se utilizar de material esterilizado, como seringas, para as substâncias injetáveis. Além de “acompanhamento médico em casos de overdose” e de assistentes sociais que oferecem opções de tratamento. Para o uso da heroína, por exemplo, são utilizadas terapias em que essa droga é substituída por outra, como a metadona, em quantidade definida e monitorada por um médico.

Novas demandas da complexa sociedade

Bom, apesar da queda de 147 casos de morte associada ao consumo de drogas para 40, depois de dez anos, hoje, a Alemanha conta com um novo contexto: “o crescimento da disponibilidade e do consumo de crack”. Assim, os especialistas acreditam que The Frankfurt Way já não atende mais as novas demandas.

Schroers afirma que “o crack pode ser fumado em baforadas rápidas nas ruas” e que o seu efeito começa e termina rapidamente. Além disso, “não há medicamentos que substituam a cocaína em pó e o crack para controlar o uso da droga de forma comprovadamente efetiva”.

Recentemente, a prefeitura de Frankfurt se viu obrigada a tomar novas medidas. Ampliaram o número de acomodações de emergência, expandiram o atendimento médico e de enfermagem e estenderam os horários de funcionamento dos cafés noturnos. Além disso, banheiros e chuveiros foram instalados dentro de um container perto da estação.

Na cidade de Hamburgo (com 88 casos de morte por consumo de drogas em 2023), “as autoridades locais instalaram um grande centro chamado The Drob Inn” em uma área de menor circulação de pessoas. Em seu pátio, “os usuários têm permissão para ficar e usar drogas”.

Segundo os defensores da estratégia, a proximidade do pátio com o centro de atendimento facilita para que profissionais da saúde e policiais supervisionem o cotidiano dos dependentes…

Apesar de parecer estranho tomar medidas que, a princípio, demonstram conivência ou permissividade para com o uso compulsivo de drogas, é preciso buscar compreender a complexidade do problema. Afinal, um problema complexo não se resolve de maneira simplista.  

Bernd Werse, diretor do CDR (Centro de Pesquisa de Drogas), avalia a política de enfrentamento às drogas na Alemanha como uma solução incompleta, mas que contribui para que os usuários não fiquem espalhados por locais onde circulam moradores e comerciantes.

Cracolândia

No Brasil, essa é uma reclamação constante daqueles que possuem o seu comércio especialmente nas redondezas do que se popularizou por Cracolândia, em São Paulo. A invasão e o saque das lojas bem como a intimidação aos clientes nas proximidades viraram motivo de angústia para muitos comerciantes. Tema dos debates dos candidatos à prefeitura de São Paulo este ano, os números da cracolândia brasileira ultrapassam os da Alemanha.

A Prefeitura de São Paulo registrou, em um ano, um aumento de 44,3% na média de usuários de drogas em consumo a céu aberto na parte da tarde (de 503 em 2023 para 726 pessoas em 2024) e de 17,4% no período da manhã (de 442 em 2023 para 519 pessoas em 2024).

A Secretaria de Segurança Pública rebate os dados da prefeitura, alegando que essa percepção de aumento teria se dado em função da concentração dos usuários em uma única via, na Rua dos Protestantes.

“O que tem ocorrido é que, como as polícias estão requalificando as vias e impedindo que os usuários voltem a frequentar vias que já foram requalificadas, eles acabam se agrupando.” Afirma o major Rodrigo Vilardi, coordenador de Análise e Planejamento da Secretaria Estadual da Segurança Pública.

Ele ainda afirma que chegamos ao décimo mês de redução de roubos e furtos, 5,5 mil a menos. O cerco montado pelas polícias estaria reunindo os usuários em uma das áreas mais monitoradas da cidade de São Paulo.

Mas como fica a recuperação dessas pessoas para a sociedade?

A Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo realizou um mapeamento de perfil com 13 mil dependentes atendidos no Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas – que seguiu um modelo parecido com The Frankfurt Way e, hoje, é qualificado como CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas), junto ao SUS -, mostrando que 63,4% dessas pessoas já frequentou as ruas para o consumo de drogas e que 30% delas viveram dessa forma por pelo menos um ano.

Usuário de drogas em sofrimento

Diversos projetos sociais em parceria público-privada tentam levar algum tipo de alívio ou esperança para essa população. Exemplo disso é o projeto Teto Trampo Tratamento (TTT), fundado pelo psiquiatra Flávio Falcone, que explica a Agência Brasil do que se trata:

O TTT é baseado na ética da redução de danos e na ideia da “moradia primeiro”, que estabelece que o ponto inicial de um processo de organização pessoal parte da garantia de um teto. Além de oferecer moradia e alimentação, a iniciativa organiza atividades culturais que envolvem de forma remunerada os beneficiários.

Os beneficiários do projeto são alocados em hotéis e pensões de baixo custo. No entanto, alguns problemas acabam surgindo, em consequência do tráfico, e essas pessoas precisam ser realocadas, sem garantia de moradia, seguindo vulneráveis.

Segundo a Polícia Civil de São Paulo, pelo menos 28 hotéis e hospedarias da região central fazem parte de um esquema de lavagem de dinheiro do tráfico de drogas.

Sobre as internações compulsórias

A juíza de Direito Isabel Teresa Pinto Coelho Diniz em evento de Saúde Mental e Direito da EMERJ (Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro) fala que a reforma psiquiátrica, Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, tem uma finalidade libertária, ou seja, o seu objetivo é proteger a liberdade individual. Isso quer dizer que um usuário de drogas tem o direito de escolher se quer ser tratado ou não, se quer ser tratado com redução de danos, com abstinência etc. Mas, apesar de a lei ser de “desinternação”, ela prevê modalidades de internação em momentos de crise, por exemplo. Ela prevê no artigo 6° três modalidades: voluntária (com o consentimento do usuário), involuntária (sem o consentimento do usuário, a pedido de terceiros e deve ser comunicada ao Ministério Público) e compulsória (determinada pela justiça, seria uma medida de segurança).

A juíza esclarece que, em qualquer das modalidades, deve haver um laudo médico circunstanciado, explicando os motivos da internação. Mas que, em termos legais, a internação compulsória prevista na lei 10.216, não teria utilidade prática. No entanto, ela explica que, entre 2011 e 2012, começou no Brasil uma higienização social. As pessoas usuárias de drogas foram retiradas das ruas para tratamento. A imprensa noticiou em massa o caso como internações compulsórias, mas, na verdade, eram involuntárias – que acabaram se tornando voluntárias porque as pessoas foram obrigadas a assinar um termo de voluntariedade.

O que se faz com o estrago?

A partir dali, o estrago estava feito, tanto porque o termo “internação compulsória” se popularizou de forma desalinhada com a lei, como porque familiares de usuários de drogas começaram a achar que aquilo era a solução dos seus problemas. Choveram, então, processos de internação compulsória. E, hoje, nas entrevistas aos candidatos à prefeitura de São Paulo, repórteres ainda utilizam o termo.

O fato é que os usuários de drogas nunca estiveram na lei 10.216. Em 2019, foi incluído um artigo na lei do Sisnad (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas), n° 11.343 de 23 de agosto de 2006, prevendo as internações voluntária e involuntária em leitos de hospital geral, inclusive, proibindo-as nas comunidades terapêuticas. A juíza defende que a internação é necessária para um manejo de crise, mas deve ser pontual.

O enfermeiro da rede de saúde mental do Rio de Janeiro, Pedro Vidal, ainda no evento da EMERJ, conta que trabalhando com pessoas em situação de rua, já foi abordado pela polícia dizendo que ele não podia cuidar de pessoas embaixo da Linha Amarela da Cidade de Deus, com a justificativa de que ele estaria contribuindo para que aquelas pessoas não saíssem mais da rua. Vidal defende que as pessoas não são usuárias de drogas por escolha. Ele conta que a maioria dos usuários de quem ele já cuidou tiveram questões associadas à violência na infância: sexual, familiar e do Estado.

Essas pessoas têm algumas formas de lidar com esses problemas: ou é enlouquecer ou é morrer (o suicídio) ou é usar substância psicoativa para poder suportar a realidade. Que é o que eu escuto em todos os meus atendimentos: eu uso substância que é pra poder suportar estar aqui.

Como suportar a realidade?

Vidal conta sobre um estudo que fizeram com as crianças que usavam cola. O objetivo era entender os efeitos no corpo e o porquê do elevado consumo. Ele explica que o tolueno, o componente da cola, não só tira a fome como suprime a percepção de tempo e espaço. Além disso, faz o usuário desmaiar. “É tudo o que você precisa durante a noite: não sentir fome, não sentir frio, não sentir dor, se extasiar, para o dia seguinte chegar”, explica ele.

Da mesma forma, porém, com efeitos adversos inferiores e menores impactos sociais, nas populações menos vulneráveis, populariza-se o uso de medicamentos como o Rivotril e o Diazepam, para dormirem e se darem um tempo do mundo.

Vidal conta que é comum que as famílias solicitem internações compulsórias, pensando na segurança dos indivíduos usuários de drogas, perseguidos pela polícia ou pelo “poder paralelo”. Ele diz que o protocolo no CAPS é informar que os profissionais não acreditam na internação compulsória. Vidal diz ainda que, a partir dessa necessidade, houve um investimento a nível federal nas comunidades terapêuticas. Esse é um recurso do qual as famílias se utilizam para suspender os usuários do sofrimento. No entanto, a prática mostra que depois de 3, 6 meses ou 1 ano afastadas da sociedade, quando retornam, no mesmo mês, fazem uso das substâncias psicoativas e acabam adoecendo três vezes mais. “Porque não se trata de isolamento. O uso de drogas é um sintoma. O que vem antes disso?”. Vidal questiona, enfim, por que, em vez de aos centros de convivência, os recursos estão sendo destinados às comunidades terapêuticas.

Sobre as comunidades terapêuticas

Essa é uma excelente pergunta. Afinal, as comunidades terapêuticas são um tanto quanto asilares, o que parece ir na contramão da lei 10.216 e que, segundo a juíza Diniz, de fato, vai. De acordo com o relatório do Ministério Público Federal, “28 comunidades terapêuticas de 11 estados tinham violações aos direitos humanos, como tortura, sequestro, cárcere privado e trabalho forçado”.

A matéria do UOL cita ainda alguns dados do Ipea, afirmando que 82% das comunidades terapêuticas estão ligadas a igrejas e organizações religiosas. “O tratamento é baseado em abstinência e práticas espirituais” e deixa explícita uma doutrinação compulsória, o que acaba sendo objeto de crítica de muitos.

O psiquiatra Marcelo Kimati, representante do Ministério da Saúde, defende o fim do financiamento público às comunidades terapêuticas. Ele alega que não houve melhora de nenhum indicador na área de saúde mental nos últimos cinco anos.

Conforme dados fornecidos pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, nos últimos cinco anos, houve aumento de 182% nas emendas parlamentares destinadas a essas instituições. Em 2020, foram destinados R$27,8 milhões; em 2021, o montante saltou para R$40,5 milhões; em 2022, R$36,4 milhões; em 2023, R$53,6 milhões (até maio).

Proposta de integração das clínicas públicas

Kimati defende “um modelo flexível para atender os usuários de drogas, que acompanhe a pessoa ao longo do tempo necessário à sua reabilitação”. Assim como fala Vidal e o psicanalista Jorge Broide em As Clínicas Públicas de Psicanálise no Brasil. Broide e sua esposa comandam a SUR Psicanálise, uma empresa de planejamento e execução de metodologias de intervenção social.

No setor público, realiza tanto atendimento direto a populações vulneráveis, como a capacitação, supervisão e formação de profissionais que trabalham diretamente na construção e implementação das políticas públicas na área da saúde, assistência social, dos direitos humanos e educação.

Broide trabalha nas ruas com pessoas em situação de vulnerabilidade. Ele defende que o governo invista nas redes de saúde pública, SUS e SUAS, bem como na educação e na habitação. Citando o programa ‘Minha Casa Minha Vida’ como exemplo, ele faz um apelo para a escuta territorial dessas populações. Para que se tenha um tipo de organização mais assertiva.

Em abril deste ano, a notícia de que o governo federal cortaria o financiamento às comunidades terapêuticas gerou muitos burburinhos. Mas a realidade é que Lula cortou o financiamento especificamente com os recursos dos fundos de assistência social. Isso não impede o financiamento de outras origens. Para mais informações, acesse o site do governo.

Pensando nesse modelo flexível proposto por Kimati, os Centros de Convivência integram bem esses serviços de saúde mental, oportunizando atividades de arte, lazer e cultura.   

Os Centros de Convivência (CECO) estão previstos no âmbito da atenção básica como unidade pública, onde são oferecidos à população em geral espaços de sociabilidade, produção e intervenção na cultura e na cidade. (Portaria 3088/2011).

Medidas preventivas giram em torno do reconhecimento do cidadão

Até o momento, falamos apenas sobre medidas corretivas. Mas quando tratamos de uma política de enfrentamento ao consumo de drogas, não só podemos, como devemos falar de medidas preventivas. Como o estado pode trabalhar para prevenir que mais pessoas se juntem aos usuários das cracolândias, além de investir em educação? Afinal, o que faz alguém procurar as drogas como fuga da realidade?

Bom, os motivos são diversos. Mas quando se trata da população mais carente, que acaba tendo menos oportunidades e sofrendo maiores abandonos, é preciso pensar em medidas que oportunizem, de alguma forma, o reconhecimento dessas pessoas dentro da sociedade. Aproveite para ler também Por que fazem corpo mole?.

Todos queremos reconhecimento. E, aqui, não se trata de uma simples oportunidade de emprego. Até porque o trabalho já costuma ter, logo de saída, esse estigma de sacrifício, dever, obrigação. Todos queremos poder sonhar com algo maior, ter a possibilidade de nos vermos nos nossos ídolos ou heróis. Por isso projetos voltados para a arte e para o esporte são tão importantes. Eles nos dão esperança de que um dia possamos nos encontrar em algo que de fato faça sentido para as nossas vidas.

Projetos sociais de prevenção
Crianças aguardam o jogo de futebol

Há dois anos, no Rio Grande do Sul, o governo do Estado disponibilizou o valor de R$ 4 milhões para serem investidos no projeto Segue o Jogo, numa parceria entre a Secretaria do Esporte e Lazer (SEL) e a Central Única das Favelas (Cufa-RS). A verba foi utilizada na “aquisição de kits de materiais esportivos destinados aos projetos sociais da Cufa-RS”.

A Central Única das Favelas é uma organização brasileira reconhecida nacional e internacionalmente nos âmbitos político, social, esportivo e cultural que existe há 20 anos. Foi criada a partir da união entre jovens de várias favelas que buscavam espaços para expressarem suas atitudes, questionamentos ou simplesmente sua vontade de viver.

Ainda no estado gaúcho, mais precisamente, na cidade de Novo Hamburgo, o projeto Núcleo de Orquestras Jovens, da Secretaria da Cultura e da Secretaria da Educação em parceria com o Instituto Arlindo Ruggeri, vem, desde 2018, captando alunos das escolas municipais e oferecendo a eles “acesso gratuito a aulas de instrumentos como violino, violoncelo e instrumentos de sopro”.

Henrique Macário Santos da Silva, professor de violino, que também foi aluno de um projeto social, destaca a evolução dos alunos não apenas musicalmente, mas também como seres humanos. “A música amplia horizontes, promove a socialização e desenvolve habilidades cognitivas essenciais”, ressalta ele.

O site Sou + Favela reúne notícias de diversos outros projetos sociais, entre eles, o Instituto Esporte na Favela, idealizado por Emerson Moura. Jogador de futebol de clubes do Brasil, Japão e Europa, Moura vem coordenando projetos esportivos há 16 anos e impactando a vida de milhares de crianças.

Só consegui realizar meu sonho porque comecei em um projeto social quando era criança. Hoje quero retribuir tudo que fizeram por mim.

É preciso cobrar do governo as políticas de prevenção. Afinal, prevenir é sempre mais fácil e mais barato do que remediar.

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