Angústia de morte: como transcender a neurose?

Celebrando o funeral ainda em vida

É como Tatiana Andia conta que está vivendo em relato à BBC News na Colômbia. Ela recebeu o diagnóstico de câncer incurável há um ano e decidiu por não se submeter a qualquer tipo de tratamento. Andia revela que não acredita que ninguém venha à Terra para sofrer. Ela quer poder desfrutar plenamente dos seus últimos dias.

Então estou em casa, vivenciando um processo de despedida muito gostoso.

Me sinto muito feliz por celebrar meu próprio funeral em vida. As pessoas vêm, contam histórias, relembramos momentos.

É algo que eu desejaria para todos. Se fosse possível, adoraria que as pessoas morressem como eu: muito felizes, muito amadas, com tranquilidade, em paz. É muito especial.

Andia parece se sentir muito confortável, ou, pelo menos, muito certa de sua escolha. Sentir-se feliz sabendo que aqueles são seus últimos dias de vida é algo que não é da ordem da neurose. Pois a neurose se constitui justamente com a castração, com a insuportável ideia da finitude.

Na reportagem, ela conta a história de um amigo, que tinha um pensamento semelhante ao seu…

Mas quando veio o câncer, não sei o que aconteceu com ele. Ele estava angustiado por não ter conseguido terminar suas coisas. Acho que ele teve a sensação de deixar as questões da vida insatisfeitas.

De repente, ele estava pronto para fazer qualquer coisa com ele. Ele se submeteu a coisas horríveis.

Aconteceu a neurose…

Na neurose, é bem comum que o discurso não acompanhe a prática. Isso, porque desejamos muitas coisas, ao mesmo tempo que precisamos de reconhecimento ou de aprovação para essas coisas. Na linguagem psicanalítica, quando fazemos a significação fálica, que é o que promove a relação imaginária com o outro, é também quando se dá a amarração desse imaginário ao real e ao simbólico. Ou seja, essa engrenagem permite que, quando nos sentimos angustiados, porque o reconhecimento ou a aprovação para algo não veio, possamos recorrer, no nosso imaginário, a uma espécie de fantasia. Assim, enquanto não havia câncer, para o amigo de Andia, era possível fantasiar sobre a não submissão a tratamentos. No entanto, quando a doença se apresenta ao real, é da ordem do insuportável e a única fantasia possível se torna acreditar numa cura, que, racionalmente falando, só poderia ocorrer através de um tratamento medicinal.

O que diz o Veda?

Na tradição hindu, Maya é a deusa da ilusão. Seu véu estendido é a advertência para a natureza ilusória daquilo que chamamos nossa realidade… A esse respeito, Schopenhauer (1818) disse: “Maya é o véu da ilusão, que ao cobrir os olhos mortais, lhes faz ver um mundo que não se pode dizer se existe ou não”.

Leia também Na antessala de Maya, ou de quando a ilusão faz falta.

Para o Veda, compõem as engrenagens da mente: citta (memória), manas (constante interpretação dos sentidos externos), buddhi (intelecto) e vrtti (turbilhão de pensamentos, desejos e emoções). Na filosofia do Yoga, devemos fazer as pazes com a nossa memória; o intelecto deve tomar as decisões que nos promovam no presente, enquanto que o turbilhão de pensamentos e as interpretações devem ser aquietadas.

Os mantras bem como a respiração são objetos oferecidos à mente para calar-se. O mantra da paz, ‘asato ma’, é um pedido para que a mente seja conduzida da não-verdade para a verdade, da ignorância para o conhecimento, da morte para a imortalidade.

asato ma sadgamaya

tamaso ma jyortirgamaya

mrtyorma amrtam gamaya

É como um pedido para que o véu de Maya seja removido. Mas essa morte e essa imortalidade têm um sentido a ser revisitado. A morte representaria a nossa identificação com o corpo ou com o eu, que é finito. Já, a imortalidade seria “o reconhecimento de nossa real natureza plena e eterna”. A mente se iluminaria finalmente quando nos desapegássemos completamente de todos os objetos e relações da vida em sociedade. Assim, a morte nada mais significaria. Aproveite para ler também A neurose na não-dualidade.

Afinal, é possível transcender a neurose?

O psiquiatra e psicanalista Wilhelm Reich falava, em sua obra ‘Análise do Caráter’, de um caráter genital, além do neurótico. Aquele estaria “de posse de uma economia da libido regulada”.

Reich observava os sintomas e a funcionalidade do corpo a partir do tipo de caráter. Assim, ele desenvolveu a teoria das couraças, que seriam pontos de bloqueio no corpo, frutos “de uma proteção contra estímulos externos” e do “controle sobre a libido”. Ou seja, são frutos de um mecanismo de defesa contra as pulsões, que são alimentadas pelos desejos e instintos bem como pelas leis e convenções sociais.

Para Reich (p.382),

Um organismo doente pode facilmente apresentar uma ligeira melhora no funcionamento energético e desfrutar desse bem-estar mais do que um organismo saudável, devido à grande diferença entre o estado de tensão usual e o ligeiro alívio que acompanha a dissolução parcial da couraça.

Isso explicaria os altos e baixos dos sujeitos neuróticos: a transição dos estados de euforia para os estados de melancolia e vice-versa ou mesmo entre amor e ódio. Os estados de um sujeito neurótico seriam mais intensos do que os de um sujeito genital e, portanto, mais percebidos. É como pensar a perda de peso. Num programa de emagrecimento, indivíduos mais salientes apresentam perdas muito mais evidentes do que indivíduos mais esguios.

A Física também poderia explicar esse fenômeno através da diferença potencial, ou seja, o trabalho necessário para que uma carga se desloque de um ponto a outro. Assim, um organismo saudável apresentaria uma menor diferença potencial, sendo necessário um pequeno trabalho para que o indivíduo altere o seu estado, enquanto que um organismo doente teria uma maior diferença potencial, exigindo um esforço hercúleo para que saia de seu estado atual. E quanto maior a dificuldade, maior a compensação, maior a comemoração!

Por exemplo, se, para um sujeito genital, é preciso apenas uma exposição ao sol ou um pequeno descanso para retornar ao seu estado “ideal”, para um sujeito neurótico, será preciso uma grande mudança em sua vida, como ser promovido no trabalho, engravidar ou trocar de carro.

Reich (p. 175-176) explica que no caráter genital…

A couraça é flexível o bastante para se adaptar às mais diversas experiências… pode ser alegre, mas bravo quando necessário. Reage à perda do objeto com tristeza, mas não fica subjugado por isso… Dado que os desejos infantis perderam seu investimento, seu ódio e seu amor são motivados racionalmente.

… Não se apega ao objeto sexual por sentimentos de culpa ou considerações moralistas; pelo contrário, mantém a relação com base em sua exigência saudável de prazer, porque isso o satisfaz.

… Sua quase completa falta de medo possibilita-lhe tomar uma posição intransigente em relação a um meio que contrarie suas convicções.

Afinal, Andia teria transcendido a neurose?

Apesar do apoio de amigos e familiares, isso só foi possível porque Andia estava muito certa do que queria. Assim, ela conseguiu convencer seus entes queridos de que aquela era a única e melhor decisão que ela podia tomar.

Em 2021, o filósofo Clovis de Barros Filho foi diagnosticado com a síndrome de Behçet, uma doença autoimune e incurável. Ele teve que fazer uma escolha similar a de Andia: ficar isolado do mundo e prolongar a sua vida ou seguir com as suas viagens e palestras, colocando a sua vida em risco. Barros decidiu: “eu vou apostar menos na longevidade e mais na intensidade“.

Eu me senti muito bem com essa decisão, porque eu integrei a finitude na minha vida boa. Eu não abri mão de viver do jeito que eu acho que eu tenho que viver, mesmo ante a ameaça de que a vida seja mais curta. Mas quem falou que tem que viver 80 anos? Isso é só uma estatística. Por que não 90? Por que não 150, então? E por que não 61? Essa tomada de decisão, quando é teórica, ou seja, integrada na vida do outro, ela é legalzinha de ouvir. Na hora que é você que toma… Sabe, foi libertador pra mim. E se não fosse a filosofia, eu não teria esse discernimento. Eu ia ouvir a voz da autoridade médica e eu não ia vislumbrar uma alternativa paralela.

Para ganhar, é preciso perder

Bom, depois de Reich, teria se desenvolvido o estudo da bioenergética, uma terapia com exercícios de respiração e de mobilidade, que propõem “ajudar a pessoa a entrar em contato com suas tensões e liberá-las”, afirma o casal Alexander e Leslie Lowen em seu livro ‘Exercícios de Bioenergética’. Ou seja, perceber as couraças e torná-las, digamos, mais flexíveis, o que permitiria tornar o caráter também mais flexível. Atenção, qualquer semelhança com o Yoga não é mera coincidência!

Krishna propõe dois caminhos de Yoga: o Karma para quem decidir praticar yoga no mundo (caminho comum dos ocidentais e maioria dos praticantes) e o Sannyasa para os renunciantes, que optam por viver com poucos recursos materiais e longe dos laços sociais. Nessa filosofia, quanto maior a renúncia, menor a força necessária para aquietar os pensamentos e, portanto, maior a probabilidade de alcançar a iluminação da mente.

Ao final da reportagem, Andia confessa que o fato de não ter filhos pode tê-la libertado do medo de perda. Talvez. Talvez, não. Não há como saber, por exemplo, se o medo em Andia estava presente e ela o reprimiu. Afinal, neurótico, genital, psicótico, sanya ou filósofo, não há ninguém que não precise abdicar-se de algo para conseguir o que quer. Seja um desejo por anos almejado, seja uma escolha menos dolorida. Já diria Freud, para que o eu exista, é preciso que dele algo se perca.

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