O CAPS, a loucura e o autista

A indústria do autista

No texto Como se organizam as psicoses e as deficiências, pudemos pensar um pouco a respeito da expansão e da confusão de diagnósticos, frutos de uma era digital. Também vimos a quantidade de crianças, e até adultos, autistas crescerem de forma exponencial. Pois bem, como toda semeadura tem frutos a serem colhidos, a obsessão pelo diagnóstico como justificativa de coisas ou comportamentos que as pessoas não conseguem explicar e, muito menos, elaborar, tem as suas consequências, com o desenrolar pela já esperada via do capitalismo (sistema ganha-perde para quem leu E como fica o romance na era digital?).

Relatório produzido por pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Rede de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes aponta para a existência de um complexo industrial do autismo atuante no país que influencia políticas públicas e se expande no mercado de bens e consumo.

É o que diz a matéria da Folha de São Paulo do dia 1° de junho deste ano, “‘Indústria do autismo’ induz políticas públicas, diz relatório: Pesquisadores alertam para criação de clínicas exclusivas para TEA no SUS”, por Claudia Collucci.

No mercado de produtos e bens de consumo, o relatório aponta para uma lista extensa, que passa por polivitamínicos específicos para autistas (sem nenhuma evidência científica para tal), acessórios, eletrônicos, brinquedos e mobiliário. Muitos são produtos comuns, que poderiam ser utilizados por qualquer criança, mas quando associados ao TEA passam a ter outro valor de mercado.

E a partir daí, seria até desnecessário citar os indivíduos e empresas que acabam se promovendo com o discurso da inclusão. Ganhos secundários para alguns e terciários para outros.

Impacto na saúde pública

O maior problema disso tudo para o Estado são os gastos públicos e os desvios de verba de uma necessidade maior para outra menor, ou muito específica.

             

Segundo dados do setor, os gastos com autismo, muitos amparados por decisões judiciais, já superaram os dos tratamentos de câncer.

Para se ter uma noção, seguem alguns números:

…em 2023, o Ministério da Saúde destinou R$ 540 milhões em recursos para criação de 120 núcleos especializados em autismo vinculados aos CERs (Centros Especializados em Reabilitação). No mesmo ano, os 2.700 CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) de todos os tipos receberam R$ 344 milhões.

E, para variar um pouquinho, em terra brasilis, líderes e representantes acabam não fazendo muito esforço para pensar soluções mais viáveis. Ainda menos, quando há segundas intenções, como a captação de votos.

No Legislativo, há uma proliferação de projetos de lei voltados para a temática do autismo. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, existem mais de 300 propostas em tramitação. Só em 2023 foram 118, muitas dissociadas das políticas de saúde mental e que não conversam entre si.
Há muita coisa que atende a demandas imediatistas. Em ano de eleições municipais, a questão do autismo tem se tornado uma espécie de capital político, diz a pesquisadora Barbara Costa Andrada, outra autora do relatório.
O CAPS enquanto modelo

Para a pesquisadora Ilana Katz, o cuidado no autismo não deve se deter ao campo da saúde, ele deve ser intersetorial, envolvendo as escolas e a sociedade. E para fazer isso acontecer, somente através da política pública, que é como funcionam os CAPS hoje. Para Amanda Dourado, outra pesquisadora e autora do relatório, não é viável que o autismo seja tratado num formato exclusivo e especializado, ele deve estar dentro dessa política maior de saúde mental.  

E para quem trabalha de acordo com os princípios da rede pública, o autismo é, de fato, só mais um transtorno a ser tratado. No caso, no CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil), onde funciona a lógica do território “articulado em rede, intra e intersetorialmente… costurado com a comunidade, com o tecido social e cultural”.

A romantização do autismo

Um problema que se capta quando falamos de autismo é que parece existir uma romantização do transtorno, como algo exclusivo e que não pode estar dentro de nada anteriormente definido. Afinal, o CAPS trata, a princípio, do “louco” ou do psicótico e esses termos acabam sendo indigestos para os pais dos autistas. Principalmente daqueles que recebem diagnósticos precoces ou que produzem eles mesmos os diagnósticos de seus próprios filhos.

Já dizia o psicanalista Luciano Elia, em trabalho apresentado no II Colóquio Internacional NUPSI/USP e XI Colóquio de Psicopatologia e Saúde Pública e intitulado Centro de atenção psicossocial como dispositivo de atenção à crise: em defesa de uma certa (in)felicidade inventiva:

Os CAPS são, como tudo hoje no mundo, cada vez mais obsessivos. Nem histéricos eles tem sido mais, pois o mundo fruto da cópula da ciência com o capitalismo, o mundo da cópula das neurociências com a psicologia comportamental não tem dado lugar à histeria, só a transtornos miseravelmente arrolados nos manuais diagnósticos e estatísticos, o DSM.
O CAPS e a loucura

Na contramão dessa tendência, seguem firmes os profissionais da rede, que acreditam não existir casos “leves” de autismo. Ou seja, todo autismo seria “grave” e assemelhar-se-ia à loucura. Mas insistem que os CAPS não têm nada de especializados e que mesmo os casos “leves” devem ser acolhidos.

O CAPS não é um serviço especializado em loucos, em loucura ou em casos graves, não porque não se destine a eles, posto que ele existe para o sofrimento grave e persistente, para os que tem seus laços sociais esgarçados, os que sofrem  em demasia – e curiosamente o que vemos é que os CAPS, ao longo do processo de sua nociva especialização em casos graves, começou a ser inundado pelos chamados casos leves…
(…)
CAPS não é para casos leves, que podem ser atendidos em ambulatórios e na atenção básica. Mas observem que, se o CAPS se desobriga desses casos, ele perde sua função ordenadora da rede, e em pouco tempo teremos uma rede de saúde mental novamente medicalizada, ambulatorizada, sanitarizada. Se é de saúde mental que se trata, o CAPS deve se envolver, mas não para tratar, absorver o caso na agenda de sua equipe de profissionais e em suas atividades quotidianas.

O psicólogo Daniel Elia, em sua dissertação de mestrado em Saúde Pública intitulado Um CAPS fora de si: um estudo sobre a atenção à crise no município do Rio de Janeiro, tenta esclarecer essa questão:

Quando se diz, portanto, que os CAPS devem tomar a responsabilidade acerca das demandas de saúde mental de um território, isso não significa que os CAPS devem apenas atender pacientes graves e cuidar para que os demais estejam sendo atendidos adequadamente. Trata-se do princípio de que os CAPS devem exercer uma função no território de incidência sobre a comunidade de modo a interferir em sua relação com a loucura e, deste modo, na experiência de sofrimento. Daí seu caráter não especializado, não seletivo e acolhedor de qualquer demanda, no sentido de que, a partir dela, deve ser um propagador de efeitos de sustentabilidade do sofrimento psíquico no convívio social.
Distinguir para tornar suportável

O CAPS surgiu da luta antimanicomial – você pode ler também A luta antimanicomial e as origens do AT -, numa tentativa de superar a “lógica manicomial pela lógica da atenção psicossocial”. Ou seja, a ideia era de retirar os doentes mentais dos hospícios, onde estavam fadados ao destino da loucura enclausurada, e de acompanhá-los na sociedade, em suas mais diversas possibilidades de relações. “De modo que a desinstitucionalização é a criação de novas formas de vida e produção de subjetividade”.

O movimento autista vem na contramão da lógica do CAPS. Enquanto o CAPS não faz diagnósticos nem distinção de indivíduos, na tentativa de promover sujeitos integrados à sociedade mesmo com a sua loucura ou independentemente de sua estrutura psíquica, a causa autista especifica, especializa e enclausura para normatizar – tornar a criança aceitável à sociedade – ou fadar a criança ao destino autista. Um movimento que conversa bem com o perfil dos novos pais. Aqueles que, em meio à era digital, “tendem a ‘saber’ mais do que a sua compreensão é capaz de alcançar”, que facilmente desqualificam professores e líderes, que fragilizam o sistema – veja mais em E onde fica o suposto saber do professor?. Aqueles que fingem que não, mas tentam sobreviver à era digital junto a seus filhos, retornando a algo que seja mais familiar e, por consequência, menos disruptivo.

Como disse Luciano Elia, o CAPS viceja “nos efeitos que produz sobre as formas como a civilização suporta e não suporta o convívio com a loucura, pois sabemos que ela NÃO SUPORTA”.

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