O filme
O filme ‘Ficção Americana’ teve cinco indicações ao Oscar este ano, ganhando o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado. Ele mostra a vida do professor e escritor Thelonious (mais conhecido pelos familiares como Monk), revoltado com a indústria literária.
Monk é um homem negro, nascido em uma família de classe média alta, e possui uma escrita refinada e, digamos, sofisticada. Ele tem dificuldade em publicar as suas obras pois as editoras não o consideram “negro o suficiente”. O que é uma sátira à forma como as polarizações encaixotam grandes questões da humanidade, tornando-as tão polêmicas.
Apesar de negro, Monk não possui a vida da periferia ou as desqualificações esperadas pelos brancos do filme. O que pode denunciar, inclusive, uma possível forma desse branco continuar se sentindo superior em relação ao negro, já que ele promove a ascensão do negro a partir de sua ignorância, miséria e infortúnio.
A ética, a moral e a razão
O que chama mais atenção no filme são as diversas percepções lançadas em torno da negritude, da branquitude, da ética, da moral e da razão. Há cenas de racismo do branco em relação ao negro, do negro em relação ao branco e do negro em relação a ele mesmo.
Enquanto Monk tenta representar a intelectualidade negra, seu irmão carrega um não-estigma do “branco rico que não deu certo” e, Sintara, uma outra escritora negra no filme, revela uma divergência lógica com Monk, falando da importância de se mostrar a realidade dos guetos, afirmando ser a realidade de seu povo, apesar de, a priori, não ser a sua própria.
Embora defenda a sua lógica com unhas e dentes, Sintara assume que, de fato, vende-se à indústria literária, mas rebate Monk com questões importantes. Ou seja, no final das contas, cada um tenta viver as suas vidas conforme lhes aprazem: os brancos ricos fingindo que não há racismo e lucrando em cima da causa negra, a negra, a priori, rica lucrando a partir de um ideal que não é dela e um negro ex-rico que, talvez, acredite ser branco.
Um filme leve, divertido e com muitos pontos importantes de abordagem. Reflete a vida como ela é: brancos e negros em diferentes posições sociais, com seus pontos de vista a partir das suas vivências. Polaridades, refletindo a nossa dificuldade de aceitar a verdade do outro, acreditando haver uma única realidade: a nossa própria.
O livro
O que me faz pensar novamente em ‘O Avesso da Pele’. Mas, no Brasil, acontece de forma inversa ao que ocorre em ‘Ficção Americana’: em vez de aceitação pelos brancos, repúdio, ódio, suspensão, exclusão. No entanto, ainda podemos pensar que, como o próprio nome diz, trata-se de pura ficção. Mas ficção contemporânea também é a nova denominação de gêneros de ‘Fuck’ e ‘We’s lives in da guetto’, obras fictícias do filme ‘Ficção Americana’, assim como de ‘O Avesso da Pele’.
É claro que as culturas brasileira e americana são bem distintas uma da outra, o que influi diretamente na forma como se formam os grupos e como funciona o capitalismo dentro desses grupos. Prova disso é que a diferença de renda entre raças no Brasil é consideravelmente maior do que nos Estados Unidos.
Brasil versus EUA
Em 2016, a Pew Research levantou diversas informações de rendimentos de brancos, negros, hispânicos e asiáticos nos EUA. Os dados mostram, por exemplo, que em 90% da população, a diferença de renda entre brancos e negros é de 31,8%; em 10%, 45,7%, resultando em uma média de 35,2%. Outra informação importante é que não são os brancos que lideram as maiores rendas, mas os asiáticos.
Já, no Brasil, em 2022, segundo o IBGE em matéria da InfoMoney, a renda média do branco é 75,7% maior que a do negro, sendo que “Entre pessoas com nível superior completo, o rendimento médio por hora dos brancos foi cerca de 50% superior ao dos pretos e cerca de 40% superior ao dos pardos.”.
O jogo do prevalecer-se
Dados como esses podem nos dar indicações do que se esperar de uma população ao esbarrar com grandes questões da humanidade. Afinal, quanto maiores as diferenças salariais entre raças, maior a tendência de um povo a se prevalecer em termos financeiros. Isso quer dizer que, para que eu me sinta superior, eu preciso ter mais que o outro. Já, quando os salários vão se equiparando, a tendência é que eu busque uma outra forma de me prevalecer em cima do outro. O que pode ser através do físico ou do intelecto, por exemplo.
Esse é o jogo da sociedade civil do qual Immanuel Kant fala:
Kant descreve a relação humana na sociedade como a disputa em um jogo, em que cada um testa as suas forças com os outros. Esse jogo teria sido engendrado, inicialmente, pela natureza, a fim de pôr em atividade o ser humano e fazer com que a sua força vital em geral se preservasse da extenuação e se mantivesse ativa.
A prevalência é um instinto natural do homem: instinto de sobrevivência, que nos primórdios tentava garantir as necessidades fisiológicas, como o alimentação, e permanência da espécie. Hoje, superadas as necessidades básicas, o homem tenta garantir a sobrevivência do seu ego, que pode ter diferentes representações e intensidades de país para país e, inclusive, de cidade para cidade, dentro de um mesmo país.