Uma grande confusão
Existe sempre uma grande confusão quando falamos de pessoas com deficiência: mental, intelectual, psíquica, psicossocial, transtorno mental e assim vai. Isso porque, embora existam definições oficiais, elas se sobrepõem em diversos aspectos, especialmente no âmbito social. Além disso, a psiquiatria vem dissociando e tornando os diagnósticos cada vez mais específicos. Dentro dessa qualificação, ainda existem os níveis de acometimento. Dessa forma, os diagnósticos costumam ser múltiplos. E, com a era da inclusão, onde novas terminologias vão sendo introduzidas, sejam para “lançar” os novos sejam para renomear os velhos, o caos acaba se instalando.
Para termos uma ideia do tamanho da problemática, utilizei-me da definição do termo “Deficiência Intelectual” no site do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho:
… funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos 18 anos e limitações associadas a duas ou mais habilidades adaptativas, tais como: Comunicação, Cuidado pessoal, Habilidades sociais, Utilização de recursos da comunidade, Saúde e segurança, Habilidades acadêmicas, Lazer, Trabalho.
Análise de definições
Bom, dessa definição, podemos começar analisando a primeira oração: “funcionamento intelectual significativamente inferior à média “. É muito comum o autista, por exemplo, ter atraso intelectual, que, se não for estimulado, pode perdurar.
Seguindo, a análise, a próxima oração diz respeito às limitações iniciadas antes dos 18 anos de idade. O autismo apresenta sinais ainda nos primeiros anos de vida. Assim, são frequentes os erros de diagnóstico entre o autismo e a deficiência intelectual.
Quanto à última oração, que fala sobre as limitações associadas a pelo menos duas habilidades adaptativas, consideremos as seguintes: Comunicação, Habilidades sociais, Habilidades acadêmicas, Lazer e Trabalho. Nessas condições, porque todas as pessoas com espectro autista têm alguma limitação no campo da socialização, as demais habilidades, por consequência, serão afetadas. Mas não quer dizer que elas não tenham capacidade para desenvolver o intelecto de forma plena. O mesmo acontece com as pessoas com esquizofrenia.
Ponto fora da curva ou exemplo de tratamento adequado?
Veja o caso de Cecilia McGough, astrônoma e ativista em saúde mental. Ela é uma das responsáveis pela descoberta da estrela de nêutrons com a maior órbita já encontrada, a pulsar J1930-1852, fundadora da Penn State Pulsar Search Collaboratory, laboratório de pesquisas de alto nível em pulsars para estudantes, e CEO da inicialmente Students With Schizophrenia, uma organização sem fins lucrativos para capacitar estudantes universitários com esquizofrenia, agora chamada Students with Psychosis.
Cecilia é esquizofrênica e autista e teve a sua maior aparição para o mundo no TEDx Talks em 2017, com o seu discurso I am not a monster: Schizophrenia. Ela conta sobre a sua experiência com a esquizofrenia e como o diagnóstico não foi um impeditivo para que desenvolvesse todas as habilidades que um ser humano é capaz de desenvolver. A primeira vez que tive notícias de Cecilia foi em um canal do YouTube chamado ‘Special Books by Special Kids’, no qual ela foi entrevistada em 2017 e, depois, em 2022.
Voltando à análise…
É absurdamente notável o efeito do tratamento de cinco anos ao qual Cecilia vinha se submetendo, envolvendo medicação, terapias e psicoterapias. Agora, deixando de lado o meu espanto e voltando ao tema deste artigo, se retornarmos ao site do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho, veremos que tanto a esquizofrenia quanto o autismo estão classificados como “Deficiência Mental”, que, por sua vez, subdivide-se em : Psicossocial, “conforme Convenção ONU – Esquizofrenia, outros transtornos psicóticos, outras limitações psicossociais”, e Espectro Autista, segundo a Lei 12764/2012.
É interessante notar que a descrição da “Deficiência Mental” do tipo Psicossocial cita esquizofrenia, outros transtornos psicóticos e outras limitações psicossociais, sendo que o próprio espectro autista é um tipo de limitação psicossocial. No entanto, foi criada uma lei específica de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
E a tal da Convenção da ONU define a pessoa com deficiência como:
…aquela que tem impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com diversas barreiras, podem ter obstruída sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.”
Veja mais no site Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
E o que diz a Psicanálise?
Agora, partamos para um outro ponto de vista. Na concepção da Psicanálise, nem a esquizofrenia nem o autismo é considerado um transtorno ou uma deficiência, mas uma estrutura psíquica, assim como a obsessão e a histeria na neurose. Isso quer dizer que são modos de funcionamento distintos dos indivíduos. Claro que, assim como nas neuroses nós temos os surtos neuróticos – crise de pânico, estados depressivos e de ansiedade, fobias etc -, nas psicoses, existem os surtos psicóticos – alucinações, delírios, discurso desorganizado, automutilação, mudanças bruscas de humor etc. E os surtos podem, sim, gerar transtornos.
E, então, neste ponto, alguém poderia questionar: “se a esquizofrenia e o autismo são apenas formas de organização e funcionamento de um indivíduo, por que se fala em limitações? Por que um autista e um esquizofrênico precisam de um acompanhamento terapêutico, por exemplo? Por que o autista precisa se submeter ao método de treinamento ABA (Análise do Comportamento Aplicada)? E a resposta para isso é simples: porque nós vivemos numa sociedade adequada unicamente à estrutura neurótica.
A confusão da era digital
A dificuldade de se categorizar os diagnósticos também é fruto da nossa mudança de hábitos, o que é consequência da nossa relação com a era digital. Quanto mais rapidamente a tecnologia avança, maiores são as novidades em um curto espaço de tempo. Então, o tempo para se processar tudo isso parece não ser suficiente. Assim, vão surgindo novos e diferentes diagnósticos, inclusive para a mesma pessoa, sendo, ainda, frequente a confusão entre os diagnósticos do autismo e do TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade).
Segundo a CDC (Centro de Controle de Prevenção e Doenças) dos Estados Unidos, a prevalência de autismo no país saiu de 1 a cada 150 nascimentos no ano de 2000 para 1 a cada 36 em 2023. No Brasil, não temos números de prevalência, mas segundo o Canal Autismo, estudos científicos estimam que “o Brasil pode ter atualmente 6 milhões de autistas ou mais!”.
Enquanto um grupo de psicanalistas defende que o autismo seria uma quarta estrutura psíquica, sendo neurose, psicose e perversão as outras três, um outro grupo acredita que o espectro autista estaria dentro das psicoses. Bom, parece-me que isso ainda é discussão para muitos anos à frente. Como diria o velho ditado popular, não cabe aqui discutirmos o sexo dos anjos. Mas cabe, aqui, entendermos que nada está concluído e que o diagnóstico não determina coisa alguma.
Agora, falando ainda mais sério…
Se pararmos para pensar sobre as próprias deficiências físicas, não seria de se esperar que elas poderiam acabar gerando novas estruturas de funcionamento da psique? Em pessoas cegas e surdas, por exemplo, em que a linguagem atravessa os indivíduos sem contexto visual e numa língua mais simplificada, respectivamente? Afinal, não se tratariam de maneiras diferenciadas de entendimento da realidade, com imaginários e simbolismos ligeiramente distintos daqueles considerados “normais”?
A gente costuma ter essa mania de nomear e classificar coisas e pessoas, certo? Mas será que o ser humano é tão simples assim, a ponto de ter caixinhas suficientes para todo mundo?