Quem é o folião?
Terça-feira de carnaval. Quem é folião, está nas ruas, com os amigos, conhecidos, familiares. Há também quem aproveite a farra apenas para descansar. Tomar um banho de praia, ler um livro, maratonar uma série. Talvez seja dia de limpar a casa, fazer o que nunca dá tempo de fazer. Ou talvez seja mais um dia de deixar de fazer o que se planejava, mais um dia de trabalho, mais um dia, como outro qualquer.
Para os foliões, é dia de se travestir.
Vestir com um disfarce… Transformar, tornar irreconhecível, falsificar: travestir a verdade.
Será que é isso que anualmente buscamos no carnaval? Ser o que normalmente não somos? Afinal, queremos sair da rotina ou da monotonia de uma personalidade só? É, de fato, tédio, ou desejo de sair do disfarce de uma vida inteira, quando finalmente, por alguns dias, a transgressão da moral está suspensa?
Não tão fictício assim…
The Purge (ou, no português, ‘Uma Noite de Crime’) é uma franquia de terror norte-americana com cinco filmes e uma série de TV. Ela retrata uma distopia nos Estados Unidos em que, por um período de 12 horas, todos os crimes passam a ser legalizados. A tradução de purge é expurgo, que vem do latim expurgare, tendo os possíveis significados:
Liberação de impurezas
Limpeza do que é prejudicial, imoral
Retirar a sujeira, imundice
Corrigir, livrar-se das falhas, dos erros
Polir, transformar em mais apurado
Em suma, nessa distopia, o governo americano concede à população um período para que sejam libertos os seus impulsos violentos, normalmente reprimidos pelas leis, com a intenção de garantir a paz no resto do ano.
E por falar em impulsos…
Em menos de duas semanas, dois casos de linchamento resultando em morte foram registrados aqui no Brasil. O primeiro ocorreu na cidade de Tabira, em Pernambuco, quando populares arrancaram de dentro da viatura da polícia um dos suspeitos de assassinar uma criança de dois anos de idade. O segundo ocorreu em Tramandaí, no Rio Grande do Sul, quando populares invadiram o local onde a polícia ainda apurava a ocorrência de abuso de uma criança de 9 anos.
Casos assim são mais comuns do que imaginamos. Seja com suspeitos apenas suspeitos, suspeitos pegos em flagrante, suspeitos com ou sem ficha criminal. Seja com estupro, assassinato ou roubo. Já assistimos diversos filmes com cenas de execução em praça pública ou de gladiadores matando para não morrerem, enquanto a plateia eufórica satisfazia os seus instintos mais primitivos.
Independente do tipo de crime, se o suspeito era culpado ou não e se é dever da justiça condenar os envolvidos no linchamento que resultaram em morte, o fato é que não se tem notícias de qualquer investigação em torno dos populares com sede de vingança ou da polícia que não foi capaz de impedir o crime contra o suspeito. No final das contas, é o excesso de cegueira da justiça, da polícia e da plateia que imperam.
Quem era só folião passa a ser pagão
A origem do carnaval remonta à Idade Antiga, tornando-se, mais tarde, uma celebração pagã. Mas, como a via com maus olhos, a Igreja Católica, deu um outro significado a esse período de festas: carnis levale, do latim, “retirar a carne”. Assim, “foi criada a Quaresma – período de 40 dias antes da Páscoa, caracterizado pelo jejum”. O carnaval passou a ser “uma data para as pessoas cometerem seus excessos, antes do período da severidade religiosa”, ou seja, uma forma de se controlar os prazeres mundanos.
Qualquer semelhança não é mera coincidência…
Excessos e poesia
Lendo a edição especial de janeiro da Revista Cult, ‘Fortuna Crítica da Poesia Brasileira’, deparo-me com uma pergunta elaborada por Paulo Leminski em 1985: Por que os povos amam os seus poetas?
Os poetas dizem uma coisa que as pessoas precisam que seja dita. O poeta não é um ser de luxo, ele não é uma excrescência ornamental, ele é uma necessidade orgânica de uma sociedade. A sociedade precisa daquilo, daquela loucura para respirar. É através da loucura dos poetas, através da ruptura que eles representam, que a sociedade respira.
A poesia e a escrita, em geral, denunciam, protestam. Dizem coisas que adoraríamos dizer e fazer. Tomam atitudes por nós, vingam-nos. Permitem-nos que cometamos os excessos, sem sermos presos ou diretamente julgados. A poesia, o expurgo, o linchamento, o carnaval: todas formas de colocarmos a cabeça pra fora do excesso de moral? Afinal, só se cura um excesso com outro? Aproveite para ler Dos excessos e seus radicalismos.