Mal-entendido: de Lacan a Newton

Dos esquemas de Lacan

Em 1954, o psiquiatra e psicanalista Jacques Lacan apresenta o seu Esquema L, que “inscreve, inicialmente, a relação do sujeito com o Outro”, diz ele em seu ‘Seminário 4: a relação de objeto’. Esse representaria o discurso de alguém em análise, no qual se descobre um sujeito demandante (S) a partir do desejo do Outro (A), que seria alguém importante na vida do sujeito.

Esquema L de Lacan, retirado do ‘Seminário 4: a relação de objeto’.

 

O eu (a), que se dirige ao analista (a’), posiciona este último como um espelho simétrico de si mesmo. O que acontece também em todas as outras relações, não somente com o analista. Ou seja, quando falamos, esperamos que a pessoa que nos escuta pense da mesma forma que nós pensamos. E é aí que se dá o mal-entendido. Afinal, a outra pessoa é outra pessoa. E necessariamente pensa diferente de nós. Então, quando não nos damos conta disso, ficamos presos numa relação imaginária com o outro (a’), independente de quem seja. Presos num “fala que eu não te escuto”. Porque eu só escuto a mim mesmo…

Diz Lacan, na pág. 10:

A relação imaginária, que é uma relação essencialmente alienada, interrompe, desacelera, inibe, inverte na maioria das vezes, desconhece profundamente a relação de palavra entre o sujeito e o Outro, o grande Outro, na medida em que este é um outro sujeito, um sujeito por excelência capaz de enganar.

Falta de questionamentos gera mal-entendidos…

Isso usualmente acontece quando estamos presos ao discurso de um outro que tem relevância em nossas vidas, especialmente pai e mãe. Pois, quando não identificamos a influência desse Outro (A), não nos identificamos enquanto sujeitos, digamos, “donos” de nossos próprios desejos. É como se focássemos somente na demanda do Outro (A), não havendo abertura para questionamentos – que é o que nos faz chegar a diferentes conclusões.  

Assim, criamos mal-entendidos o tempo todo. Vemos pessoas discutindo como amantes ou como opositores em debates polêmicos – uma que diz que disse e a outra dizendo que não disse. Afinal, quem tem razão? Quem escutou de fato o outro e quem só escutou a si mesmo? E a coisa fica cada vez mais acalorada à medida que o consenso se distancia. Quem nunca viu uma discussão em que um percebe a contradição do outro, expõe o outro e esse outro fica cada vez mais irritado por não conseguir sair dessa espécie de loop? Ou uma discussão em que as duas pessoas parecem estar falando de coisas completamente diferentes e elas seguem no loop com uma raiva em escalonamento, acreditando que, de fato, estão num diálogo, quando poderiam estar cada uma em um monólogo.

Da tirania ao nivelamento

É importante lembrarmos que o mal-entendido não fica apenas nas discussões acaloradas entre oponentes. Ele também se perpetua entre os nossos pares, grupos, clãs. Por dezenas, centenas e até milhares de anos. Talvez, esse seja o maior perigo do mal-entendido para a sociedade. Justamente onde se pensa que não há nada de errado, onde não há discordância. Afinal, todos pensam da mesma forma. Mas, se para ser aceito num bando, é preciso pensar igual – porque não há espaço para o diferente ou porque o diferente é calado cada vez que se pronuncia -, parece haver algo minimamente tirano aí, não?

“Você tem que escolher um lado!”, ouvi de uma analista, membro de uma grande escola de psicanálise, quando levei para o grupo questionamentos que derrubavam a teoria que a escola dela defendia. Se eu fosse de escolher isso ou aquilo para pensar, jamais teria percebido a tirania em suas palavras.

Nos grupos, as contradições rolam soltas, mas ninguém se dá conta. É um que começa com um raciocínio, o outro que termina com outro, mas, que no final das contas, todos acreditam defender a mesma ideia. Na Psicanálise, por exemplo, é comum que, em virtude da escrita complexa – como você viu no início deste texto -, haja diferentes interpretações da mesma coisa. Mas, no fim, utiliza-se uma espécie de fator de correção, para deixar todos, digamos, na “mesma página”. E é por isso que grande parte dos psicanalistas assumem uma mesma posição ideológica e criticam sempre os mesmos políticos.

Cultura de exploração e benefício de classe

Pensando novamente na cultura de exploração, as classes trabalhadoras assumem posições que favorecem a sua manutenção e crescimento nas instituições, empresas de outros ou na sua própria. Os códigos de conduta, as legislações e os ensinamentos em geral são interpretados de forma a beneficiar a classe. Nas escolas e universidades públicas, não é diferente.

Passávamos eu e meu marido um dia pelas estruturas da Feira do Livro em nossa cidade. Havia uma turma inteira de crianças que ouviam a um professor de História que falava da Revolução Farroupilha. Ele questionava “o que seria do Rio Grande do Sul se o estado tivesse se separado do restante do país?”. E ele mesmo respondia: “estaríamos ainda andando em carroças… não teríamos acesso às tecnologias”. O que eu ouvia era tão estranho aos meus ouvidos, que só pude me dar conta do que tinha sido falado algumas quadras depois.

Ação e reação

Começamos a nos perguntar por que aquele professor falava algo tão absurdo. Utilizava-se de uma postura incisiva para falar de sua teoria nada fundamentada e praticamente improvável. Afinal, o que ele queria dizer com isso?

Bom, uma teoria é que essa seja reação ao movimento O Sul é Meu País, que teve apoio de uma parcela considerável da direita sulista quando surgiu e que segue na boca do povo. Inclusive, um plebiscito informal realizado em 2017 nos três estados mostrou que 96,13% das pessoas (de um total de 341.566) votaram a favor da separação da região Sul do restante do Brasil. No entanto, segundo os dados do movimento, em 2014, havia em torno de 6 milhões de simpatizantes.

O presidente do movimento e autor do livro ‘O Sul é o Meu País’, Celso Deucher, diz ter vergonha de ser brasileiro e pede desculpas por isso:

Cara, eu não sou daquele país lá da bunda grande, da mulata puta, essa imagem que o Brasil faz questão de passar.

Bom, se seguirmos a lógica da Terceira Lei de Newton, um discurso extremista pediria um outro de mesma intensidade e de sentido oposto para ter seu efeito anulado. Talvez, esse seja o raciocínio. Mas será que funciona mesmo trocar um mal-entendido por outro? Ou será que isso apenas intensifica as polarizações e os tais discursos de ódio? Que tipo de resolução é essa? Parece o tipo que domina os debates públicos atualmente e que contribui para nos manter alienados aos nossos discursos.

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