A canção do Norte

Encontros com os espíritos da selva

Sua tendência à solidão conduzia Leo a ambientes afastados, até mesmo desertos. Portanto, desde menino, era comum vê-lo embrenhar-se na natureza selvagem, encontrar um lugar tranquilo e sentar-se, totalmente imóvel. Após alguns minutos, a vida local começava a se manifestar: animais e insetos, antes escondidos, retornavam a seus movimentos usuais. Deste modo, ele se encantava com a riqueza do ecossistema ao seu redor, como se ouvisse a canção do Norte.

Então, em um desses mergulhos na mata, aconteceram eventos peculiares. Por exemplo, certa vez, ao aquietar-se num vão entre arbustos, próximo a uma nascente, observou uma enorme aranha negra, peluda, descer em espiral por um tronco fino. Passando próximo de onde estava, dirigiu-se à água para beber. Após matar a sede, retornou no mesmo ritmo lento, parando de vez em quando, levantando as patas dianteiras, como se captasse algum tipo de informação.

Conexão pelo olhar

Eis que, nesta mesma tarde, mais dentro do mato, sentado sobre folhas secas, Leo ouviu um farfalhar por perto. O barulho foi aumentando até que, de um dos lados, surgiu um lagarto teiú, com mais de um metro. Ele se aproximou até parar diante de Leo, a uma distância de um braço. Leo olhava hipnotizado para o animal, fitando seus olhos, encantado, num tempo que pareceu uma eternidade. Imaginou-se adentrando pelo olhar do lagarto, até sentir-se o próprio. Espraiou-se em seu interior, absorvendo sua essência e captando suas memórias, toda sua evolução desde o ovo até aquele instante.

Através dos seus olhos, Leo viu a si mesmo como uma figura brilhante, cujo olhar emitia um fulgor amarelo dourado. Assim, conseguia captar todos os detalhes daquele ser, que naquele momento era também ele mesmo. Deste modo, as impressões sensoriais fluíam sobre sua pele, sobre sua língua, que dançava como em câmara lenta, projetando-se e retraindo-se. Sentiu uma emoção primitiva, um eco remoto vindo dos confins do tempo, que lhe provocou um tremor por todo o corpo. Como resultado, nesse momento, o animal balançou lentamente a cabeça e eles se desligaram. O teiú se virou e partiu.

Percorrendo trilhas e desvendando segredos

Com efeito, Leo teve outros encontros similares. Desde pequeno gostava de pegar na mão os calangos de jardim e os observava atentamente, olhando fixamente em seus olhos sentindo as batidas de seus corações sobre a sua palma. Por fim, esses animais se transpuseram para o seu mundo onírico e muitas vezes sonhou com eles, sempre como símbolos de conexão profunda com a natureza. Por vezes eles apareciam como guias no meio do mato, ou como companheiros de libertação ou grande entusiasmo.

Durante os anos em que habitou próximo a costa, Leo caminhou longamente pela orla, as vezes por quilômetros. Do mesmo modo, no Norte, também percorreu trilhas abertas na selva e teve encontros inusitados que o marcaram para sempre.

O chamado do mundo selvagem

Quando trabalhou no garimpo de Serra Pelada, no Pará, durante o horário de verão, ele aproveitava a diferença de 2 horas após o expediente, e também nos finais de semana, para se aventurar no mato. No Norte do Brasil existem apenas 2 estações uma com menos chuva e outra com chuvas torrenciais. No garimpo uma delas se caracterizava por um sol escaldante que transformava a terra numa poeira fina, forçando todos que trabalhavam lá a usarem máscaras. A outra, de chuvas constantes, reduzia a terra a um atoleiro, fazendo os carros com tração nas 4 rodas dançavam de um lado para o outro nas estradas enlameadas. Leo vivenciou ambos os períodos.

As portas abertas da percepção

Essas caminhadas no mato lhe trouxeram acontecimentos impressionantes. Uma vez, num final de semana, caminhando pelas trilhas mais evidentes, chegou a um lugar surpreendente. Mãos humanas haviam escavado um buraco retangular, como uma piscina, exatamente antes de um riacho desaguar numa queda d’água. O som do líquido correndo, caindo sobre as pedras e o canto dos pássaros criava uma atmosfera fascinante.

O chão estava tão quente que as gotas d’água evaporavam imediatamente e uma exalação se elevava do chão em ondas perceptíveis. Havia uma infinidade de borboletas no lugar. Elas se aproximavam da beira do rio, tentando pousar na margem, mas a quentura extrema as afugentava.

A oferta da água

Leo banhou-se na cascata, sentindo o friozinho da água escorrer pelo seu corpo com imenso prazer. Ao sair debaixo d’água, algo inusitado aconteceu. Ele se viu cercado por centenas de borboletas que se aproximavam do seu corpo, tocando-o e se afastando com rapidez. Ao susto inicial seguiu-se o encanamento. Elas bebiam água em seu corpo cuja temperatura lhes permitia aproximação. Então, ele entrou diversas vezes para se molhar e saiu para a margem, sempre com a mesma dança de borboletas ao seu redor. Leo abriu os braços e expandiu a mente para uma distância onde conseguia se ver, lá embaixo, cercado por um verdadeiro enxame desses graciosos seres.

Tesouros vegetais e memórias sonoras

Neste período, ele voltou diversas vezes a este lugar onde, nas cercanias, descobriu uma imensa plantação de pimentas abandonada, uma cena surrealista. Também encontrou dezenas de sementes inteiramente desconhecidas, imensas, em formatos estranhos, de uma beleza atrativa. Carcaças de insetos e ouriços de castanha do Pará abundavam por todos os lados. Nesses passeio ele levava sacolas plásticas e quando voltava ao acampamento, as tinha abarrotadas de sementes, galhos, e folhas que enrolava em páginas de jornais e acondicionava em sua bagagem. Depois, já em Belém, ele as enviava para a casa dos seus pais, em grandes sacos de viagem, com cerâmica marajoara, cocares e artesanatos diversos.

O Norte deixou marcas profundas em sua memória e em seu coração. A gentileza das pessoas o cativou fortemente. Gostava de ouvir os relatos dos colegas de trabalho daquela região. Viajava com eles em suas infâncias em pequenas vilas, construídas sobre troncos, na beira de rios, tendo a selva com quintal.

Comungando vidas simples

Em suas visitas ao museu zoo botânico, em Belém, ele se demorava olhando nos olhos dos animais, imergindo dentro de suas essências, prospectando como era ser cada um deles. Todos transmitiam melancolia e medo. Um dos que mais o impressionou foi o peixe-boi. Preso numa piscina rasa, ele dava voltas de um lado para o outro. Seu olhar transmitia uma tristeza aguda. Como um canto de dor, de agonia, de saudades dos vastos espaços subaquáticos de onde viera. As cobras também o impressionaram. As imensas jiboias e sucuris com olhos frios que contavam histórias de lugares escuros e úmidos, nas beiras de rios, de longos sonos, de barriga cheia, aninhadas em covas asquerosas.

O olhar cruzando espaços entre mundos

As impressões que essa contemplação de olhares lhe causava o marcaram de forma duradoura. Muitas vezes, ele teve sonhos onde estava no corpo de um desses animais e tinha experiências extremamente vívidas onde também apareciam espíritos do mato.

Em uma de suas perambulações, a beira de um platô muito elevado, não muito longe do acampamento, no garimpo, Leo se viu capturado por um canto deslumbrante! Ele estava na borda de um terreno alto e plano, onde haviam derrubado árvores para construir possivelmente um novo acampamento. Aquela melodia era longa, cheia de notas tristes, mas cativante, de uma beleza sobrenatural. Ele lembrou das histórias de humanos presos em encantamentos de espíritos da selva, enquanto aquele canto se aproximava cada vez mais, até que, finalmente, a fonte de onde essa canção provinha estava bem na sua frente, lá embaixo, envolto pelas sombras da mata densa. Ele teve uma visão de si mesmo, no alto do morro, olhando para baixo. Sentiu-se estranho como se estivesse nu e todo seu corpo tremeu com arrepios.

A cançaõ do Norte. O olhar cruzando espaços entre mundos.

Vendo-se através de seres misteriosos

Uma vez que o sol estava se pondo atrás das serras ao longe, rubro, num céu completamente limpo, ele decidiu voltar para o acampamento. Teve que se esforçar para libertar-se daquele mistério e em todo o trajeto sentiu arrepios e a vontade de retornar.

Assim, todos os dias, impreterivelmente, Leo atendia ao chamado da selva e se aventurava pelas trilhas que haviam por perto. Raramente encontrou com garimpeiros e, quando aconteceu, estavam sempre em duplas. Eles o olhavam desconfiados e seguiam seus caminhos sem o incomodarem.

Desde então, em todo o período que passou no Norte, os sons da mata capturavam a sua atenção e lhe traziam mensagens que ele não compreendia, mas que sabia estarem gravadas em seu ser, e que um dia revelariam todo seu significado.

O canto da criação

Durante sua permanência lá, Leo se sentiu bem-vindo em todos os lugares e foi tratado com deferência por todas as pessoas. Em Belém, à noite, ele saia, as vezes sob a chuva fina para um terreno plano, que seria um campo de futebol, agora abandonado e cheio de árvores baixas, perto de onde estava alojado. Ali ele se sentava sobre uma lona grossa, agasalhado, e se abandonava aos sons da noite. O canto das cigarras e o piado dos sapos era tão forte, que ele se sentia flutuar. Era como estar no centro de uma imensa garganta de onde brotava um canto gutural, vindo das profundezas da terra. Essa música, o fazia se sentir levitar, flutuando entre mundos. Haviam mensagens no meio daquele canto. Como se milhares de vozes contassem histórias antigas, de infinita beleza, com toques de intensa melancolia.

Um lar carente de cuidados

Posteriormente, Leo habitou numa casa de campo por 6 anos, realizando um sonho longamente acalentado. Ele esteve procurando por um imóvel na zona rural por algum tempo. Num certo dia, visitando um condomínio fechado de chácaras, ele viu um chalé abandonado, cujo terreno estava coberto por mato alto. Ao visitá-lo, se condoeu do estado em que se encontrava a casa. Portas e janelas abertas, assoalho manchado, fezes de animais em alguns lugares. As condições eram deploráveis.

Ele encostou as mãos numa de suas paredes e lhe disse: “me chame para tomar conta de você!”. Anotou um número que constava numa velha placa e se foi. No dia seguinte ao ligar para a imobiliária, soube que a casa estivera anunciada para aluguel, mas há anos. No entanto deixou o seu número e pediu para entrarem em contato, no caso de reaverem os donos. Passados apenas alguns dias, recebeu uma ligação da proprietária da casa, que estivera na imobiliária por acaso. Marcaram para se encontrar e tudo foi acertado. Leo pagou os débitos com o condomínio e na mesma semana, tomou posse.

Amor e boa vontade unindo intenções

Apesar de todos os problemas que encontrou, em pouco tempo consertou a parte elétrica e hidráulica, livrou-se de centenas de aranhas e outros insetos e dos gambás que habitavam no forro. As janelas amplas davam para um terreno imenso, com árvores de diversos tipos. Três espécies de laranja, pés de figo, de pêssego, de araçá roxo e de pitanga. Na cerca cresciam maracujás e chuchus. A casa tinha três pavimentos. No térreo havia cozinha, sala de estar e de jantar amplas e um lavabo. Já no andar superior além de um mezanino, haviam dois quartos, um dos quais com varanda, e um banheiro. E no porão, haviam dois quartos e um cômodo longo que Leo utilizou como lavanderia.

Adquiriu mesa de corte e diversas ferramentas de marcenaria de um vizinho em mudança. Assim como sofá, poltronas, televisão e uma bicicleta ergométrica. Recebeu de amigos alguns moveis essenciais, como uma mesa com oito lugares, balcão, armários e diversas cadeiras. Adquiriu todos os eletrodomésticos necessários e, com o tempo, fogão de ferro e outros apetrechos típicos de uma casa de campo.

Domesticando as sombras

Esse foi um dos períodos mais felizes de sua vida. Nessa fase fluíram turbilhões de memórias de sua estadia no Norte e muitas mensagens foram finalmente decodificadas. De início Leo conviveu com todos os seus medos. A casa de madeira, pré-fabricada, “falava o tempo inteiro” de acordo com as mudanças de temperatura. Sempre parecia que tinha alguém mais lá. Ouvindo os sons do vento, do mato, do canto dos pássaros e o silêncio que envolvia tudo, ele se projetava em estados alterados de consciência com frequência. Recebeu a visita de espíritos do mato e do próprio dono da casa que falecera um ano antes.

Lidou com todos os problemas de manutenção para um imóvel daquele estilo, naquele lugar. Conviveu ativamente na vida da comunidade, uma pequena cidade, sem prédios, tranquila na maior parte do tempo. A proibição local contra agrotóxicos tornava a alimentação saudável e barata.

Multiplicando flores e frutos

Leo adquiriu muitas mudas de plantas as mais diversas, desde pés de ipê amarelo até bulbos de lírios que espalhou por todo o terreno. Ao lado da casa havia um flamboyant rosa que quando florido dava um toque oriental à vista da varanda, no quarto do primeiro andar.

Esses 6 anos foram cheios de realizações. Na sua oficina, Leo fabricava, não apenas moveis, bancadas, janelas, portas, cercas etc., mas também fazia litros de sabão. Todas as suas habilidades manuais foram colocadas em prática. Costurou todas as cortinas, consertou tudo que precisava de reparo. Desbastou uma parte do terreno para uma piscina inflável de tamanho médio. Transformou o quarto do andar térreo além de oficina, em academia de musculação, com equipamentos completos.

Interrupção cheia de promessas

Eventualmente mergulharemos nessa fase da vida de Leo. Assim como em outras. Por enquanto salientamos a sua felicidade e bem-estar pela comunicação harmoniosa com o sobrenatural onde o visível e o invisível se entrelaçam. A riqueza de suas vivências na selva vibrante e a sua conexão profunda com os espíritos da natureza. Cada memória lhe traz a certeza de que sua força e coragem assim como seu otimismo e gratidão lhe abrem portas para mais vivências de beleza e realização. E o rio da vida segue transpondo obstáculos, germinando sementes, alimentando mais histórias e aventuras.

Manoel Queiroz

Curitiba, 29 de outubro de 2024

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