A crise do ser milionário

Quem quer ser um milionário?

O filme do cineasta britânico Danny Boyle, baseado no romance best-seller do indiano Vikas Swarup e lançado em 2008, tem como título original ‘Slumdog Millionaire’, que, traduzido para o português, seria ‘Milionário Favelado’. Conta a história de um jovem das favelas de Mumbai, na Índia, que trabalha em uma empresa de telemarketing servindo chá e que acaba ganhando o prêmio máximo de um programa de TV chamado ‘Quem quer ser um milionário?’.

No Brasil, o ‘Show do Milhão’ teve grande sucesso de audiência com a sua primeira versão, entre o final da década de 90 e início dos anos 2000. A versão deste ano voltou a ter sucesso, superando a audiência do Fantástico, na TV aberta. Mas os programas de TV com foco em premiações não são os únicos com um público ávido pela sorte de vencer e de mudar de vida.

No ano passado, a Caixa Econômica Federal anunciou que, apenas no primeiro semestre, foram arrecadados R$ 10,3 bilhões com apostas para a loteria. Este ano, tivemos uma série de notícias envolvendo as apostas de jogos online (as famosas bets) bem como as rifas online, incluindo denúncias de lavagem de dinheiro. Um levantamento do Itaú BBA apontou que, em um ano, o brasileiro gastou R$ 68,2 bilhões em bets, tendo recebido R$ 44,3 bilhões em prêmio e perdido R$ 23,9 bilhões em taxas.

Tentando superar o sentir-se explorado

Na semana retrasada, abordamos aqui na coluna a cultura de exploração na qual nos encontramos. Pois bem, o fator impulsionador para obter uma vida milionária de forma simplificada – ou seja, através da sorte – é justamente o sentimento do sentir-se explorado. Afinal, como superar esse sentimento da maneira menos dolorida possível?

Assim, crescem as apostas na sorte e nos negócios digitais, como sendo os de menor investimento e de maior rentabilidade. A antropóloga e professora da University College Dublin (UCD), Rosana Pinheiro-Machado, lidera uma pesquisa que acompanha por dois anos os “500 maiores influenciadores do marketing digital do Brasil”, diz a BBC. Ela faz menção às “condições precárias de trabalho em parte do mercado brasileiro” e fala:

A lógica da pessoa querer ser chefe de si mesma, em um país onde muitos empregos estão marcados pela lógica da humilhação, é muito libertadora.

Marketing digital e mentoria

O assunto, abordado pela BBC, traz como pivô o candidato à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal. Esse que, nos mais diversos debates, promete transformar as vidas dos cidadãos paulistanos, com seu discurso empreendedor. Para Pinheiro-Machado, Marçal é “a personificação do mundo do marketing digital e suas visões ideológicas”.

Alega-se que qualquer um pode prosperar financeiramente, o que não é uma inverdade. E, a princípio, os cursos e “mentorias” voltados a essa finalidade podem ser, de fato, genuínos. Afinal, encontramos na mídia, hoje, uma gama de influenciadores que se utilizam de suas bem-sucedidas experiências pessoais para tentar ganhar a vida. Como? Vendendo as soluções dos seus problemas a alguém que possa se identificar com eles.

A pesquisa de Pinheiro-Machado analisou de perto 32 mil perfis “que manifestaram interesse ou efetivamente fizeram algum curso de marketing digital, independentemente de qual ou com quem, para aumentar sua presença nas plataformas”. E o resultado foi que:

Somente 1,2% dos perfis monitorados ganhou seguidores de fato, saindo da classificação de “aspirantes” para o posto de influenciadores, com mais de 5 mil seguidores.

A probabilidade de dar “certo”

A questão é que, apesar de os problemas serem os mesmos, as circunstâncias e as pessoas são diferentes. As circunstâncias podem nos dar mais ou menos amparos – é o capital disponível, são as pessoas com quem a gente pode contar, são as brechas na lei, os cenários políticos, econômicos, ambientais e até mesmo a sorte. Já, quem opera uma solução para os problemas são as pessoas, cada uma com as suas referências e experiências, com as suas interpretações, vícios, entendimentos e condicionamentos.

A experiência simplesmente não poderá ser a mesma para todos, mas a probabilidade de que as coisas se saiam próximas ou muito próximas do esperado está ali. Não há como negar. Não importa se é de 10 ou 90%. E é também por isso que a loteria, as bets e as mentorias de Marçal são negócios legais.

No entanto, há um detalhe nesses tipos de negócios, que é saber quando parar. A questão é que o regime capitalista se sustenta justamente através de ações compulsivas, aumentando, assim, a probabilidade de ter muito mais gente perdendo do que ganhando. Porque a gente não pode esquecer que, para alguém ganhar, alguém tem que perder. Claro que poderíamos aplicar essa lógica a qualquer tipo de trabalho ou oferta. Mas, aqui, trata-se de um querer mais, cada vez mais. É um querer dobrar a meta a cada ciclo. É um querer crescer infinitamente em um planeta finito.

A natureza humana simplesmente não permite que todos sejamos milionários. Os traços do capitalismo aparecem na história da humanidade desde os seus tempos mais remotos. Aqui, o capitalismo é a causa e também o efeito numa sociedade, mesmo quando classificada como comunista. Afinal, a diferença entre as chamadas sociedades capitalistas e comunistas está apenas na proporção e na intensidade do abismo entre ricos e pobres.

Para complementar a reflexão, cito o psicanalista Marcelo Veras em artigo à Revista Cult, no mês de setembro. Ao abordar a ideia da eterna incompletude que acomete todos os seres humanos, ele resgata Freud em ‘Introdução ao narcisismo’ e ‘O mal-estar na civilização’:

A ilusão do amor faz com que dois seres acreditem que fazem um. Mas a solidão e a incomunicabilidade do gozo revelam que mesmo no coletivo somos uma sequência de uns.

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