Harmonia sons e silêncios

Contrapontos do ser em evolução

Acostumado desde a infância a estar a maior parte do tempo sozinho, Leo criou diversos brinquedos que o entretinham durante meses. Já que ele tinha grande habilidade manual, gostava de esculpir peças em barro. Pequenos animais, utilitários domésticos, veículos e seres humanos. Ele adorava montar cidades com caixas de papelão. Virava embalagens pelo avesso e desenhava ou colava portas, janelas, telhado e outros detalhes. De fato, chegou a construir uma vila inteira, com várias ruas, igreja, colégio e casas. Além disso, fazia pequenas bancas de revistas e nelas colocava publicações minúsculas que ele compunha com recortes de revistas. Todas essas coisas, por sua natureza frágil, duravam pouco. Portanto, ele constantemente as refazia em formatos diferentes, agregando prédios, praças, estátuas e até mesmo embarcadouro de onde zarpavam barcos de papel em viagens aos confins do mundo. Nesses cenários sobrenaturais ele experimentava harmonia sons e silêncios.

A fantasia flutuando na leveza dos balões

Outras vezes construía estações para lançamento de balões. Estes eram bexigas de feira, onde ele colava cordões presos a uma caixinha recortada como cesta. Dentro delas ele colocava mensagens minúsculas, solicitando amizade. Com efeito, soltava-os com grande pompa, banda de música, fogos de artifício e aplausos. Ele também experimentou vários tipos de foguetes, usando tampas de caneta e cabeças de fósforo como combustível. No entanto, por curtos e rasos os voos, ele se alegrava e os imaginava cruzando longas distâncias, em aventuras completas e recheadas de fantasia.

Religiosidade, alegrias e delicadezas

Uma das lembranças mais preciosas de sua infância remete a uma grande festa, realizada em homenagem aos Reis Magos. Ao redor de uma igreja de bairro, nas proximidades do majestoso rio que banhava sua cidade natal, eram armadas barracas com guloseimas, brinquedos, presépios, artesanato e lembrancinhas. Destes a sua memória evoca com carinho uma caravela, cuja estrutura era feita com palitos de palha de coqueiros. Papéis de seda coloridos completavam o brinquedo que lembrava uma lanterna chinesa. Dentro, haviam balas de goma e açúcar. Dessa forma, constituíam verdadeiras joias, belas e frágeis.

Apreciação da cultura ancestral das danças

Para comemorar a data da fundação da cidade, eram realizados espetáculos, na avenida principal. Num palco montado na calçada em frente ao grande mercado municipal, se apresentavam grupos folclóricos de vários lugares do estado. Por vezes, Leo assistia às danças, vindas da Europa e mantidas com zelo, com suas coreografias elaboradas, vestes coloridas, melodia e ritmos ancestrais. Competiam por prêmios os Pastorils, Reisados, Bumba-meu-boi, Marujadas, Cocos de roda, polcas e minuetos. Por conseguinte, naquele ambiente festivo, ele se transportava, absorvendo os detalhes, sentindo os ritmos e dançando com eles, na sua imaginação. O entusiasmo que o preenchia se tornou um dos tesouros mantidos num pedestal de memórias sagradas, nos compartimentos de sua Arca de Noé.

Manuais, antecipações e cautela

Neste ponto, vale salientar que, estando sempre a beira de um precipício de insegurança, Leo a estendia a tudo. Assim sendo, sentia-se responsável por guardar esse tesouro de arte, beleza e emoções puras. Tudo que chegava ao seu conhecimento através da leitura ou o tocava através dos sentidos era preservado em sua memória e fazia parte do seu acervo de preciosidades.

Através da sua vida colecionou manuais de sobrevivência para quaisquer circunstâncias catastróficas. Então, seguidamente os procurava, absorvendo as suas exortações e imaginando-se aplicando-as em casos de necessidade. Já adulto, ele teve um parceiro de acampamentos que, uma vez ao ano, na data do seu natalício, partia para um lugar de natureza inóspito. Lá ele sobrevivia apenas com os parcos instrumentos que havia levado e o que encontrava disponível. Nesse sentido, chegou a atravessar noites abrigado entre arbustos, em reentrâncias de grandes rochas, ou ao relento, ao lado de uma fogueira, protegendo-se sob uma capa de chuva ou cobertor. Leo sentia grande admiração por ele.

Treinamento de sobrevivência

Ainda na infância, por uma graça concedida pela sua mãe, Leo frequentou o escotismo, no ramo Lobinho, cuja estrutura era baseada na obra de Rudyard Kipling, O Livro da Selva. Assim, os superiores recebiam títulos com Balu e Bagheera, análogos aos personagens que protegem e guiam o menino lobo em suas aventuras. Sobretudo, Leo adorava os acampamentos, os jogos de caça ao tesouro e os desafios. Ele foi instruído a como mover-se e identificar sinais no mato, a usar bússolas, fazer fogo e a construir pequenos artefatos. Todo esse treinamento o preparava para o caso de, em alguma eventualidade, ter que sobreviver na selva. Por isso também aprendeu sobre o uso de cordas e nós e suas utilidades.

Sentia-se especial em sua farda azul-escuro, com o lenço ao redor da gola, preso pela insígnia da flor de lis, além dos distintivos. Ao fazer parte dessa irmandade, onde todos eram gentis e alegres, sua satisfação não tinha tamanho. Curioso e interessado, prestava atenção a tudo que lhe era transmitido. Aliás, incorporou o lema “sempre alerta!” como uma das regras básicas em sua vida.

O lobo solitário, arredio e desconfiado

Um dos temas fundamentais era a vida em comunidade. Consequentemente, a alcateia era o centro vital para os lobos e todas as atividades eram dedicadas ao seu bem estar e perfeito funcionamento. As regras de respeito aos mais velhos e à hierarquia foram incorporadas na maneira quase militar com que, posteriormente, passou a se tratar internamente. A ajuda ao próximo e as boas ações diárias ressoaram com a sua compaixão, inconsciente, mas já claramente pronunciada. Esses ensinamentos, apesar de se terem fixado em sua mente, não o impediram de ser um lobo solitário a maior parte da existência.

Capacitação em múltiplas técnicas

Depois, Leo estudou numa escola para formação de jovens profissionais, onde aprendeu a usar diversos materiais com destreza. Capacitou-se em marcenaria, olaria, tipografia, mecânica, eletricidade e eletrônica, além das disciplinas regulares para o seu nível escolar. Desse modo, sua habilidade manual e interesse em reparar objetos quebrados e criar coisas novas o fizeram usar largamente o conhecimento adquirido. Frequentemente, desmontava e remontava aparelhos elétricos e eletrônicos. Planejava e realizava projetos de eletrificação em todos os lugares onde morou, prescindindo de serviços profissionais. Mais tarde, também desenvolveu habilidades na informática, recuperando e montando computadores e periféricos, além de sua desenvoltura no uso de softwares. Fez diversos cursos nessa área e trabalhou por mais de 10 anos, em manutenção de rede de computadores. Ademais, chegou a ser um dos responsáveis pela rede nacional de banco de dados, num setor importante de uma grande empresa.

Obstáculos e superações

Previamente, ao chegar a idade de alistamento, Leo quis seguir a carreira no exército. No entanto, foi dispensado tendo como motivo seu elevado grau de deficiência visual. Ele se sentiu frustrado. Todavia, passou a pesquisar sobre treinamento militar e veio a descobrir a filosofia das artes marciais. O conhecimento e a aplicação de disciplina nesses campos o influenciaram fortemente. Principalmente ao desenvolver estratégias para driblar e superar carências e desafios apresentados à sua sensibilidade excessiva. Sua relação consigo mesmo era a de um general com um soldado raso. Os comandos, exigências, cobranças e punições o acompanharam por longo tempo. Leo idealizou e frequentou diversas terapias, amenizando essa pressão interna.

O mundo acadêmico e as portas abertas

Em seguida, ele entrou no curso de Engenharia Elétrica. O mundo acadêmico lhe abriu muitas portas. A biblioteca, a maior que já conhecera, era um dos lugares que ele mais gostava de frequentar. Então, pesquisava, fazia anotações e lia avidamente. Suas relações com alguns colegas, inclusive de outros cursos, lhe trouxeram conhecimento e interesses por diversos campos, desde arquitetura, artes, botânica e biologia. Nesse período, por influência de um desses novos amigos, pesquisou sobre plantas e se transformou em um aficionado no uso de ervas medicinais, hábito que mantém.

Mergulhos em novos territórios

Na universidade, Leo fez diversos cursos extracurriculares sobre temas variados. Desde literatura, astrologia e artes divinatórias até um curso de controle mental. A esse respeito, a teoria e as práticas pareciam terem sido destinadas a ele. Alguns experimentos deixavam os participantes boquiabertos com suas próprias capacidades. Ele se sentia em seu próprio território. Como resultado, sua gratidão por essas oportunidades o conduziu a outras, onde terapias de regressão e vivências em realidades alteradas dilataram o raio de abrangência de suas sondagens. Ao mergulhar nesses assuntos sua certeza de que o universo lhe falava encontrou validações poderosas.

Distinção e relações de status

Leo distinguiu-se em alguns desses cursos, conquistando a amizade dos instrutores. Com eles frequentou ambientes requintados da alta sociedade local. Eventos que mesclavam erudição notável e vaidade tola. Sempre nos períodos de lua cheia, esses concertos particulares reuniam socialites, artistas plásticos, músicos eruditos, exposições de pintura e a excessiva demonstração de empáfia.

Encontro de almas sensíveis a luz do luar

Eis que, numa tarde de final de semana, um pianista internacional, contou a alguns presentes que a escritora e poetisa Nízia Floresta, morando em Paris, descrevera a Claude Debussy a beleza da lua cheia numa imensa lagoa do interior, próximo à capital. Segundo ele, essa descrição impressionou de tal maneira o compositor que o levou a conceber o clássico Au Clair de Lune. Imediatamente, alguns interessados se propuseram a levar o artista para verificar in loco. Leo participou dessa trupe. Logo após, o esplendor do luar iluminando toda a paisagem, banhando as dunas e cintilando nas pequenas ondas daquela imensa lagoa confirmaram àquelas suposições. A magia daquele momento envolveu a todos em harmonia sons e silêncios cheios de reverência. De volta à casa, num grande salão, com vistas para o mar, ele tocou aquela música, enquanto a chuva enfeitava a melodia com sua delicada canção líquida.

A impressão da alma no tecido da realidade

Como as notas de um instrumento se dissipam no ar — folhas levadas pelo vento suave — Leo vê a sua trajetória se harmonizando com a sinfonia do universo. Cada fragmento de sua vida — as dores e os triunfos, os dias de luta interna e as noites silenciosas de contemplação — agora formam uma composição com a assinatura de seu ser. Ele sorri com tranquilidade e gratidão, vislumbrando os seus pensamentos e sentimentos como elementos necessários para a grandiosa construção da realidade.

Manoel Queiroz

Curitiba, 24 de setembro de 2024

Compartilhar

Deixe um comentário