Movimentos do feminino: da provável beleza ao mal improvável

Movimento cheerleaders nos EUA

Muitos dos meus textos se voltam para o papel do feminino na sociedade. Não somente porque é uma tendência, visto que todos os demais movimentos (negro, LGBT etc) partem do feminista, mas também porque muitos detalhes acabam sendo deixados de lado. Detalhes esses que revelam controvérsias, fatores complicadores para a evolução do próprio movimento.

É interessante ver um país como os Estados Unidos, com tanta diversidade étnica, com tanta representatividade negra – um movimento consolidado e bem definido – e com tantas líderes femininas, amarrados ainda a tantos valores retrógrados.

Ao escolher assistir o documentário ‘As Cheerleaders do Dallas Cowboys’, do Netflix, pensei que seria legal ver todo o trabalho das meninas líderes de torcida, a sua dedicação, a sua força, para tentar entrar e permanecer em um dos maiores grupos da NFL (National Football League). Afinal, aquilo ali não é para qualquer um. Mas testemunhar o que existe por trás dos bastidores me fez repensar o que aquelas meninas estavam, de fato, fazendo.

A condição para fazer parte do grupo do Dallas Cowboys é ser perfeita. E ser perfeita implica possuir uma beleza física pré-determinada, realizar os movimentos com total controle e sorrir do começo ao fim. Para que essa perfeição possa caber perfeitamente nos almejados microuniformes da equipe.

Você está pensando demais

Foi o que a avaliadora disse a uma das candidatas porque ela não conseguia sorrir o suficiente enquanto dançava e exigia o máximo de sua musculatura. Porque ela não conseguia fingir o suficiente de que tudo estava bem. Desde o início do processo, parece que o “pensar demais”, além de não ser pré-requisito, é desaconselhável, afinal, para entrar para o time, é preciso aceitar as incompatíveis remunerações. Assim, empresas multimilionárias seguem explorando os corpos femininos e subestimando as suas mentes.

Vítima ou suspeita?

O documentário ‘Vítima X Suspeita’, também do Netflix, mostra casos de mulheres norte-americanas que fazem denúncias de abuso sexual e acabam sendo presas elas mesmas. 200 casos são investigados durante 4 anos por uma jornalista, que encontra um padrão no processo policial. Os investigadores são policiais homens, sem preparo para lidar com casos sensíveis, que se utilizam de falsas provas, técnicas de persuasão e machismo, para converter a vítima em suspeita. Além disso, a própria polícia divulga foto e informações pessoais das vítimas que acabaram confessando a denúncia como falsa, como forma de intimidar futuras denunciantes.

Segundo o filme, são mais de 460.000 abusos sexuais por ano nos Estados Unidos, dos quais apenas 30% são reportados à polícia e ínfimo 1% dos abusadores são processados. Fica a questão de se vale a pena denunciar esses crimes no país.

Bom, acho que é importante fazer uma avaliação de todas as partes, para que não cheguemos a conclusões precipitadas. Os dois primeiros casos investigados pela jornalista no filme são de mulheres que acompanhavam dois homens por livre e espontânea vontade (evidência das câmeras de segurança e de seus próprios depoimentos). Uma vai até a casa do então abusador e a outra caminha em direção ao carro de seu então abusador. E é apenas muito próximo ao momento do ato sexual que elas relatam a sua rejeição.

Movimentos feministas no Brasil

Não há evidências do exame de corpo de delito e quando são questionadas sobre se elas resistiram ao ato sexual, a memória se torna inconsistente. E casos como esses se repetem inclusive pelo Brasil. No entanto, aqui, existe um aparato maior para a mulher vítima de crime sexual. No Brasil, os anos 90 foram marcados “pela criação das secretarias específicas para as mulheres, culminando em uma nova secretaria de políticas, com status de ministério, na primeira metade do ano 2000”. Hoje, há um canal especializado para se fazer denúncia, o disque 180.

As leis criadas após os movimentos feministas da década de 80, são: Lei Maria da Penha (11.340/2006), Lei Carolina Dieckmann (12.737/2012), Lei do Minuto Seguinte (12.845/2013), Lei Joana Maranhão (12.650/2015), Lei do Feminicídio (13.104/2015). E existe uma ampla rede de serviços que as mulheres brasileiras não só podem como devem procurar: Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), Casa da Mulher Brasileira, Centro de Referência às Mulheres Vítimas de Violência, Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, O Serviço de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (SAMVVIS), Núcleos de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência (Defensorias Públicas estaduais). Para mais informações, acesse também a Plataforma Mulher Segura.

Herança patriarcal

Bom, os Estados Unidos parecem lidar com os casos de violência sexual a partir da premissa de que o réu é inocente até que se prove o contrário. Como acontece em qualquer outro crime. Mas também fica claro nas investigações do documentário de que existe uma diferença de tratamento às partes feminina e masculina, evidenciando, assim, o machismo. Já, no Brasil, com toda essa rede de apoio à mulher, fica a impressão de que partimos da premissa de que todo réu é culpado, até que se prove o contrário.

Talvez, se os depoimentos das vítimas fossem mais firmes, as investigações nos EUA poderiam seguir outros rumos ou, no Brasil, poderia não haver a necessidade de toda essa rede de apoio às mulheres. Mas, afinal, por que tantos depoimentos são considerados, assim, tão inconsistentes? É claro que existe o fator trauma, mas, no caso das mulheres, existe também o fator patriarcado, pelo menos, nessas duas nações.

Uma necessidade de manter os corpos femininos tão sexualizados, num eterno jogo da sedução, numa eterna busca pela perfeição. Numa crença de que as mulheres devem transmitir constante simpatia, devem ser polidas, prendadas e responsáveis pela manutenção de seus relacionamentos amorosos.

Ao ser questionada sobre se resistiu ao seu abusador, Megan, um dos casos investigados no documentário, relata:

“Eu sei que ele é uma pessoa influente e eu estava tentando ser legal com ele. Então, eu dizia que meus amigos estavam me esperando e que eu precisava ir embora.”

Como sair pela tangente e construir o improvável?

Por que ser legal com alguém que, a princípio, não está sendo legal com você? Por que voltar para alguém que lhe machucou (como acontece na maioria dos casos de violência doméstica aqui no Brasil)?

Sim, existem diversos fatores que influenciam essas tomadas de decisão que aparentemente são tão irracionais. Mas, tendo em vista o número de casos envolvendo mulheres, parece-me justo incluir o legado patriarcado ao pensar o coletivo. E se a causa é patriarcado, a saída também não seria pela via do patriarcado?

Acho que as redes de apoio às mulheres no Brasil têm sido muito importantes, mas não podemos esquecer de que são tentativas de reparação de um mal. Tentativas de evitar mortes, que, muitas vezes, estão na iminência de acontecer. Então, como podemos pensar a prevenção desse mal? Não daquilo que está em vias de ocorrer… Ao contrário, como construir algo impensável, improvável? Como evitar que mulheres se envolvam em relacionamentos violentos ou que, pelo menos, saiam deles rapidamente e não repitam essas relações?

Se a herança do patriarcado prevê todos os valores citados anteriormente, não seria necessário, em primeiro lugar, desvencilharmo-nos deles? Como podemos, por exemplo, seguir apoiando atividades que colocam em exposição corpos femininos hiper sexualizados e esvaziados de seus pensamentos? Como podemos seguir transmitindo tradições que reforçam a domesticação da mulher? Às vezes, é preciso olhar pros detalhes, para as coisas que nos parecem normais e inofensivas. Mesmo “empoderadas” como dizem que estamos, ainda é possível estarmos presas à cultura e dançarmos conforme a música do capitalismo. O que torna esse “empoderamento” bem parcial ou, talvez, até ilusório. Aproveite para ler também O conto da mulher: perversão e empoderamento.

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