Rivalidade feminina é mito?

As rivais ginastas e o recalque

Em conversa com a Casa do Saber, a psicanalista, socióloga e documentarista, Ingrid Gerolimich comenta a reverência feita pelas ginastas americanas no pódio da final individual de solo à brasileira Rebeca Andrade. Ela defende que a atitude de Simone Biles e Jordan Chiles foi um ato político: “Isso faz com que outras mulheres, vendo essa cena, possam se inspirar nela para também replicar isso nas relações delas…”

Gerolimich é uma defensora da amizade feminina. Ela acredita que existe uma forte narrativa disseminada pela própria sociedade referente a uma rivalidade feminina. A exemplo disso, vimos viralizar, uma semana antes, a possível reação de Biles à apresentação de Andrade nas barras assimétricas, durante a final da ginástica artística em equipe. Reação assumida no Brasil do que a cantora de funk Valesca Popozuda chamaria de “recalque”:

Desejo a todas inimigas vida longa

Pra que elas vejam a cada dia mais nossa vitória

O meu sensor de periguete explodiu

Pega sua inveja e vai pra…

Beijinho no ombro pro recalque passar longe

Beijinho no ombro só pras invejosas de plantão

Fake news nas Olimpíadas

Gerolimich acredita que essa rivalidade é, na verdade, um mito construído ao longo do tempo e uma estratégia política a favor do patriarcado. “A ideia de que as mulheres são rivais, que as mulheres não podem ser amigas, isso é a maior fake news da história”, diz ela.

Bom, as reações das ginastas americanas em ambos os casos são apenas especulações. A amizade não pode ser medida em termos de expressões corporais ou verbais captados pontualmente num único evento. No primeiro caso, talvez, se possa falar em respeito, que não representa necessariamente o que se sente. Afinal, respeito é uma questão de moral e bons costumes. Já, no segundo, indica surpresa. Punto e basta!

Assim, nas Olimpíadas, de fato, foi possível verificar a demonização das relações femininas por parte da imprensa. Mas essa rivalidade feminina só poderá ser constatada mesmo bem longe dos torneios. Talvez, começando pela própria música de Valesca Popuzuda.

O sucesso é fake ou é tendência?

O hit lançado em 2013 somou milhões de visualizações do clipe oficial, ficou na lista das músicas mais baixadas no iTunes por várias semanas, foi usado em campanhas publicitárias e regravado nos mais diversos gêneros musicais. Os compositores são dois homens cariocas, que procuraram os empresários homens de diferentes cantoras mulheres para vender a sua letra. Leia também o texto de O Globo.

Em 2017, Valesca mudou a letra de ‘Beijinho no ombro’ no intuito de desestimular a rivalidade. A campanha #JuntasArrasamos foi uma iniciativa da marca de shampoo Seda, que convidou a cantora para regravar a canção. Valesca passou a discursar que a “competição é um ‘obstáculo’ na vida das mulheres” e a defender a união e a colaboração entre elas. Saiba mais em matéria do Estadão.

Desejo a todas as amigas vida longa

Unidas vamos conquistar ainda mais vitórias

Beijinho no ombro agora é coisa do passado!

Tamo arrasando! Vamos juntas lado a lado!

Parece que a narrativa da rivalidade feminina, além do patriarcado, tem outros balizadores. Afinal, quem ganha com tais discursos e produções?

Projeto patriarcado

É bem verdade que o machismo estrutural faz parte de uma cultura disseminada, não só entre homens, mas também entre mulheres. Por isso é estrutural. Ele define papéis e comportamentos distintos para o homem e a mulher dentro de uma sociedade e se utiliza de marcadores como “mulheres são rivais umas das outras” ou “homens não choram” para se sustentar. (Por consequência, o machismo exclui os demais gêneros. Digamos que o LGBTQIA+ não estava previsto no “orçamento” do projeto patriarcado.)

Passado o longo parêntese, o que faz algo estrutural é a velocidade com que se reproduz; é estar presente nas unidades familiares, nas amizades e, por fim, na convivência com a sociedade. As narrativas são construções, mas, uma vez compradas, elas são propagadas, como a contaminação do COVID-19. Por isso canções como ‘Beijinho no ombro’ acabam se tornando tão populares.

Bom, a história do patriarcado já foi discutida por aqui antes e se inicia com a escravização das mulheres – primeiros seres humanos a serem escravizados na história das civilizações. E falamos de uma escravidão sexual, onde as mulheres eram classificadas de acordo com sua beleza e fertilidade. Algumas tinham mais regalias do que outras, podendo a sua sobrevivência depender dessa classificação. Quem sabe quantas mulheres tiveram que entregar, enganar ou matar umas às outras em nome da sobrevivência…

Um mito?

Finalmente, a escravidão ficou para trás, mas existem resquícios dela. Afinal, até hoje, temos os tais concursos de beleza, bem como o jogo da conquista, ambos baseados num sex appeal. Quantos mais resquícios poderemos ter por aí? Beijinho no ombro? Conturbados e frequentes relacionamentos entre mães e filhas?

Inclusive, poderíamos falar da visão de Freud sobre o amor no homem e na mulher, onde ele é muito específico com cada gênero – o que, mais tarde, passou a ser tratado por “personalidade”. Mas, mesmo assim, entraríamos na questão de quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. E, como a Psicanálise só nasceu em 1900, ela analisa o homem e a mulher de sua contemporaneidade, ou seja, o homem e a mulher já contaminados pela narrativa da rivalidade feminina.

No frigir dos ovos, que mito é esse que teria iniciado com a criação do patriarcado e ainda perdura até os nossos dias? Que mito é esse com poder de transformar relações e o percurso da história da mulher na sociedade? Isso é mito ou verdade? E, se é uma verdade, não pode ser tão desconstruída quanto um mito? Aliás, quem disse que isso já não vem acontecendo? Talvez, só tenhamos que fiscalizar os balizadores. Afinal, o ganho não tem que ser para alguns, mas para todos.

Compartilhar

Deixe um comentário