A Cura

O poder silencioso da cura

Durante esses quatro dias que passei em casa, pude contemplar o poder silencioso da cura, pois acidentei-me enquanto fazia o jantar. Foi uma cena rápida, quase cômica, dessas que parecem sair de um desenho animado: a faca escorregou da bancada, caiu no chão e, como que desafiando as leis da física, ricocheteou direto na minha perna.

Meu saldo foi um corte pequeno, nada dramático. Indolor, mas logo brotou uma marca vermelha. O sangue queria sair, mas se intimidou com o ambiente. Logo, não dei importância. Sabia que os meus linfócitos (lembrei das aulas de biologia) estavam trabalhando diligentemente na cura.

A evolução da cura

Nos dias seguintes, observei aquela pequena ferida com uma atenção fora do comum, como quem acompanha uma novela em capítulos curtos: vi a cor mudando, o inchaço cedendo, a pele se reorganizando. Era como se houvesse uma dança silenciosa de células, tempo e paciência. Foi quando percebi que a cura é mágica.

Havia algo de sagrado naquele processo silencioso. A cura não faz barulho, não precisa anunciar sua chegada. Vai se fazendo, no escuro, no fundo. E, muitas vezes, só a notamos quando já passou.

Dessa vez, não fiz nada para interferir. Apenas esperei o processo. Há curas que não podemos apressar.

Como somos curados

Ao longo da vida, não é apenas o corpo que se fere — a alma também sangra em silêncio. As dores que habitam o invisível são, muitas vezes, mais profundas, pois não há curativo, remédio ou terapia que melhore. Há corações que atravessam anos machucados, almas feridas que nem o tempo encontra a cura.

Em contrapartida, outros têm uma facilidade na cura. São jovens com a pele resistente, onde o colágeno está em plena atividade e não têm vícios ou doenças que atrapalhem a cura.

Há também um grupo especial, eu diria, que possuem o corpo todo grosso de cicatrizes, que não se intimidam mais quando a vida traz uma nova ferida, uma nova dor. Já passaram por tantas, que uma a mais ou a menos, não faz diferença. São almas bondosas, escolhidas, e que apenas um bom bate-papo com elas, já nos traz a cura nem sabemos do quê, mas em suas companhias, nos sentimos bem.

Infelizmente, há também aquele grupo de pessoas que gostam de manter as feridas abertas, pois veem o sofrimento como um propósito e não buscam a cura. O vitimismo é mais cômodo que estar bem, pois os desobriga de enfrentarem a vida.

A Cura

Para sermos curados é preciso que algo nos fira, mesmo que de forma inesperada. Assim, podemos enxergar melhor o próprio corpo, o próprio coração. Além disso, nem sempre o corte é visível. Quantas vezes a gente se machuca sem saber? Sentimos depois do “baque.”

As feridas emocionais podem vir através de uma palavra dita sem cuidado, uma ausência sentida demais, uma atitude que fere, uma lembrança que volta sem ser chamada. Marcas que não sangram, mas se instalam. Cicatrizes internas, que o tempo insiste em remodelar discretamente das feridas que carregamos sem ninguém perceber.

Lições

Esse pequeno corte me ensinou mais do que qualquer livro de autoajuda. A cura veio e me mostrou que o corpo tem sua sabedoria, sua calma, seu tempo. E que a alma, quando respeitada, também sabe se refazer. Para tanto, é necessário, num primeiro momento, o olhar: reconhecer o machucado e decidir o que oferecer ao que te doeu.

Assim como nas feridas físicas, em que buscamos profissionais que nos ajudem na cura, as feridas emocionais podem ensejar também um bom profissional para que você se recupere do que lhe machuca, dentro de você.

As cicatrizes

Ninguém gosta de cicatrizes. Parecem defeitos em nosso corpo, mas elas têm um significado tão especial, de que a cura aconteceu.

Meu corpo tem muitas cicatrizes. Algumas me seguem desde criança. Tem umas que nem lembro como aconteceram. Minha mente se prontificou a apagar. Também trago marcas emocionais, como qualquer pessoa. Ao longo da vida, escondi muitas feridas e dores, inclusive, de mim mesma. Da mesma forma, que também testemunhei curas acontecendo lentamente, sem aplausos, sem testemunhas. Quem nunca passou por isso?

Há feridas que nos transformam. Não porque são grandes, mas porque nos obrigam a ver de perto, a escutar, a entender que somos feitos de pele, sim, mas também de silêncio, de tempo, de camadas que só o viver revela.

Nossas cicatrizes são uma arte sutil do tempo. Uma costura entre o que fomos e o que estamos nos tornando. Às vezes, dói. Outras, a gente nem percebe. Quando nos damos conta — quando a pele volta a ser lisa, quando o peito já não pesa — entendemos que há um poder ali. Um poder quieto, mas profundo: o de seguir em frente, mais atentos, mais inteiros, mais vivos.

Enquanto escrevo para vocês, observo a pequena cicatriz ainda viva de meu ferimento doméstico. Claro que já apliquei cosméticos para melhorar o tom, mas ela ainda está aqui, marcando a passagem do tempo.

Aprendi com tudo isso que a cicatriz é a prova da cura. É símbolo. É lembrança de que tudo passa. Cicatrizar, percebi, não é voltar a ser como antes. É seguir sendo, de outro jeito, mas felizmente, curada.

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8 comentários em “A Cura”

  1. “A cura não faz barulho”, exatamente para que possamos “ouvir” os apelos do nosso corpo. Acredito que podermos lembrar-nos das nossas feridas, sem nos colocarmos na posição de vítimas, nos torna mais empáticos frente às dores alheias. Nossas cicatrizes não nos definem, mas ajudam a contar nossa história. Grata por essa crônica tão cheia de simbolismos e poesia.

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  2. Bom dia! Há feridas que duram muito para cicatrizar. Aparentemente parecem fechadas mas foram tão profundas que continuam doendo no local do machucado, às vezes, para sempre. Assim também acontece na alma e é bem pior, porque o o único remédio é o perdão; e o perdão pode ser muito lento de acontecer. O remédio
    do perdão é a oração Abraços ❤️. Aline

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    • Bom dia, minha querida Aline.
      É bem verdade. Há feridas profundas que nos causam dor, sem que esperamos. Para estas, o tempo, o amor, o perdão, como a senhora falou são antissépticos que ajudam para que estas não infeccionem nossa alma por inteiro. Obrigada pela leitura e comentários.
      Um beijo enorme.

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