O que se faz com o desejo de não existir?

Falta de vida

Acabamos de deixar o mês de setembro, mas o Setembro Amarelo não deve nos deixar jamais. Prestar atenção nas pessoas ao nosso redor deveria ser um hábito universal e atemporal, independente de era analógica ou digital. Afinal, quando um caso chega ao psiquiatra, ao psicoterapeuta ou ao atendente voluntário do CVV (Centro de Valorização da Vida), pode já ser tarde demais. E não somente em relação ao ato em si de tirar a própria vida, mas ao fato de não se viver ainda em vida.

Mesmo décadas de tratamentos psiquiátricos e psicoterapêuticos podem não ser suficientes para fazer o sujeito seguir encontrando motivos para viver. Porque, se não existe uma base sólida para isso, se não existe êxito em existir, a morte estará sempre na iminência de ocorrer. Como diria o psicanalista Carlos Eduardo Leal, “o suicídio é o único ato que tem êxito, porque não tem volta”.

Assim, as pessoas com ideações suicidas buscam o que é possível para elas, aquilo que é menos insuportável. Porque, quando o viver se torna insuportável, o morrer passa a ser a única saída. E, no desespero, vale tudo. Mas há, inclusive, quem se organize para isso.

Saídas de emergência

Em 2023, a BBC trouxe a notícia da morte de 50 pessoas no Reino Unido ligada a um site que reúne indivíduos através de fóruns onde se discutem formas de tirar a própria vida. Essas pessoas se dariam apoio umas às outras, inclusive, compartilhando substâncias indicadas ao ato.

Este ano, a BBC expôs uma investigação que envolvia 700 pessoas, também no Reino Unido, trocando mensagens em um site que propunha a busca de um parceiro para cometer suicídio. Segundo a BBC, “mais de 130 britânicos podem ter tirado suas próprias vidas após usar uma substância química promovida pela plataforma”.

Na Suíça, uma morte ocorreu dentro de uma cápsula de suicídio. Apesar da prisão de algumas pessoas e da apreensão do dispositivo, o suicídio assistido é legal no país. Nesse caso, a controvérsia se dá justamente pelo fato de a cápsula permitir um suicídio não assistido ou não acompanhado por um médico e de não se tratar de um dispositivo médico. Somente “em 2023, aproximadamente 1.250 pessoas optaram pelo suicídio assistido no país, segundo a mídia estatal suíça”.

Na Holanda, a eutanásia e o suicídio assistido são permitidos desde 2002. Inclusive, tem sido uma tendência para casais em fases finais de vida. Apesar disso, essas práticas “são estritamente controladas por regulamentações previstas em lei”.

Os pedidos de eutanásia surgem frequentemente de pacientes que vivenciam um sofrimento insuportável e sem perspectivas de melhora.

A solicitação deve ser feita com toda seriedade e convicção. Os pacientes não têm o direito absoluto à eutanásia, nem os médicos têm o dever absoluto de praticá-la.

Nem tudo se sustenta

Nos Estados Unidos, detalhes da morte do ator Matthew Perry se revelaram ao longo das investigações. Perry, que fazia terapia para depressão e ansiedade com cetamina, pediu para seu assistente aplicar uma dose muito maior do que a de costume.

As investigações sobre a morte do ator revelaram uma “extensa rede criminosa clandestina” de fornecedores da substância e descortinou o mundo de dependência por trás dos bastidores de grande parte das celebridades hollywoodianas. O uso abusivo de opioides através de receitas médicas nos Estados Unidos já foi tema da coluna, leia também Acontece nos filmes, acontece na vida: toxicomania.

Na Coreia do Sul, tivemos notícias de mortes de diversos astros do K-pop. Aparentes suicídios que denunciam “o escrutínio no mundo altamente competitivo do show business coreano”.

Os superfãs são tão obcecados por esses ídolos que parece um ciclo vicioso colocá-los sob um microscópio para atuarem em alto nível.

As investigações sobre as causas dessas mortes são aparentemente abafadas pelo governo coreano. Mas para saber mais sobre o mundo K-pop e seu público, recomendo a série documental Pop Star Academy: KATSEYE, original Netflix.

Quadro melancólico

Em Luto e Melancolia (pág.28-30), Freud descreve a melancolia da seguinte forma:

…se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição.

Apesar de se assemelhar ao processo de luto, a melancolia possui características muito específicas: o objeto perdido não é identificável e o sentimento de autoestima está completamente perturbado. E Freud continua:

O quadro desse delírio de inferioridade – predominantemente moral – se completa com insônia, recusa de alimento e uma superação – extremamente notável do ponto de vista psicológico – da pulsão que compele todo ser vivo a se apegar à vida.

Ou seja, existe uma recusa das satisfações, saciedades, dos prazeres que a vida oferece. O melancólico faz um movimento para fora dos laços sociais, ao não endereçar os seus atos a alguém. Diferentemente de quando nos identificamos e fazemos transferência, que endereçamos ao outro as nossas palavras e ações.

Da potência ao desejo de não existir

A passagem ao ato é uma das formas de suicídio, a mais popularizada e a menos noticiada, com suas restrições e metodologias de redução de danos. Mas existem muitas outras maneiras de se direcionar ao suicídio quando partimos do ponto desse esvaziamento da energia vital. A fuga da realidade pode ser real ou ilusória. No entanto, mesmo ilusória, quando há danos físicos, ela se concretiza. Será apenas uma questão de tempo.

Tudo depende de quão esvaziados estamos para seguirmos por um caminho ou por outro. Por outro lado, quanto mais energia temos disponível, maior será a nossa capacidade de procurar saídas para os problemas que encontramos no caminho. Mas, afinal, de onde vem essa energia?

Infelizmente, não existe uma fonte definida ou uma receita de preparo. Mas o desenvolvimento do ego de um indivíduo se dá nos primeiros anos de vida. Um ego forte ou um ego frágil dependem de inúmeros fatores provenientes do meio em que esse indivíduo cresce. Afinal, o que nutre essa criança? Que desejos, que crenças, que medos, que oportunidades?

Mesmo a mania, que aparentemente elimina um gasto psíquico exigido pelo recalcamento e gera energia suficiente para não ceder em satisfação, possui uma vitalidade um tanto quanto questionável. Colette Soler, em seu ‘Inconsciente a Céu Aberto’ (pág. 83-86), critica a tese freudiana sobre a mania, à qual Freud parece ter renunciado, reivindicando a pulsão de morte nesse esquema:

O maníaco não é o cínico nem o amante da boa vida, tampouco é o homem das paixões, e é preciso encontrar meios de distinguir a vitalidade bizarra que lhe é própria, e que ameaça a vida, da afirmação assumida e sem entraves das pulsões.

Novamente, quando falamos em prevenção ao suicídio, questionamos o que podem aqueles que estão ao redor dos potenciais suicidas. Mas não costumamos nos perguntar o principal: o que podemos fazer para evitar que as pessoas se tornem potenciais suicidas? Porque diante de tantos daqueles que estão na iminência de tirar a própria vida, não podemos muito. Poderemos ouvir, impedir, encaminhar, acompanhar, internar… Enquanto profissionais, medicamos, tentamos dar anteparos emocionais. Mas até quando? Até quando essa rede de apoio se sustenta para esses tantos? Até que ponto podemos ou devemos ignorar ou recusar um “desejo” insistente de não existir? Afinal, a que custo se vive?

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