Transcendência em pontes de luz

Guardião de segredos compartilhados

Uma visão superficial sobre a vida de Leo pode levar a erros de interpretação. Principalmente porque ele tem uma tendência mais a encobrir do que a revelar. Habituado a esconder-se e aos seus pensamentos e sentimentos durante anos, o fato de exibir a sua intimidade mostrou-se tarefa difícil. Ele tornou-se obcecado em criar segredos. Mesmo os seus diários estão cheios de passagens escritas na linguagem que ele idealizou. Nesse sentido, sua fixação em ocultar a sua privacidade também o levou a ter o mesmo empenho em guardar aquilo que lhe era confidenciado. Portanto, ele tornou-se o guardião de acontecimentos os mais diversos das vidas de muitos que cruzaram o seu caminho, como numa transcendência em pontes de luz, tornando-se guardião de segredos compartilhados.

As pessoas se abriam naturalmente com ele e, as vezes, por indicação de terceiros, alguém o procurava para compartilhar experiências profundamente dramáticas. A sua mãe, ao perceber essa aproximação de necessitados de atenção, uma vez lhe disse: “Eles o procuram para você lhes lamber as feridas!” Uma amiga lhe disse algo similar, não menos grosseiro: “Usam as suas orelhas como pinico!”

Descerrando os véus do constrangimento

Esse hábito cresceu a partir de alguns sustos, pois, devido a sua inexperiência e carência de amigos, Leo confiou em pessoas que o traíram, revelando e deturpando as coisas que ele lhes contava. Não que houvesse algo anormal ou incriminatório nesses acontecimentos, entretanto muitos deles guardavam uma pesada carga de vergonha. Também porque, durante os anos que habitou com seus familiares, muitas das coisas que lhe eram preciosas foram desvalorizadas como esquisitices. Sua coleção de insetos, folhas, galhos e conchas foi várias vezes despejada no lixo, levando-o, por fim, a guardá-la em caixas de sapatos, escondendo-as sobre a caixa d’água interna que havia na casa onde moravam. Reservar-se tornou-se para ele uma questão de sobrevivência.

A terapêutica da atenção

Desse modo, Leo participou de muitos dramas pessoais, as vezes extremamente graves. No entanto, sentia-se valorizado pela confiança que depositavam nele. Obviamente, algumas dessas pessoas o usaram, aproveitando-se de sua ingenuidade e inexperiência. Mas em geral, eram apenas desprovidas de conhecimentos, argumentação ou força interior para lidar com as graves situações por que passavam.

Leo acompanhou algumas delas, no curto tempo em que conviveram, aconselhando-as da melhor forma que podia, dando-lhes subsídios, com palavras, sugestões de leitura e até mesmo datilografou artigos de revistas e capítulos de livros para lhes fornecer.

A alma prisioneira de teias afetivas

Grande parte dos desfechos lhe foram desconhecidos, mas de alguns recebeu gratidão pelo seu envolvimento e disponibilidade, de formas comovedoras.

Essas experiências expandiram seu conhecimento das emoções humanas e da delicada trama das relações familiares e afetivas. Assim como dos intrincados enredos que alguns seres criavam para si próprios. Além do mais, ajudaram a dissolver a imagem que ele tinha de si mesmo como um renegado, sozinho no mundo. Reconheceu que haviam situações menos vantajosas do que a sua, e que poucos estavam preparados para lidar com elas. Ao levar isso em conta, sentia-se privilegiado e agradecido pela proteção que sempre sentiu.

O canto dos cisnes sob o signo do infortúnio

Entre os resultados adversos, já afastados pelos imperativos da vida, posteriormente ele sonhou com duas delas em situações de agonia. Apesar da impossibilidade de contatos, sentiu que algo muito grave estava em andamento. Ocasionalmente soube que elas haviam tirado as próprias vidas em momentos de extremo desespero. Embora não fossem próximos e seus destinos tivessem se cruzado rapidamente, a intensidade de seus encontros, a profundidade dos sentimentos envolvidos e a empatia que ele sentira as marcou e Leo soube que pensaram nele nos seus momentos fatídicos.

Transcendência em Pontes de luz.

Orações e presságios

Tendo como exemplo a sua mãe, cujas orações incluíam parentes, amigos e conhecidos, ele tinha listas de pessoas pelos quais orava diariamente. Uma delas contemplava os vivos e a outra, os que já haviam partido. Para Leo orar envolvia visualizações e a reprodução de sentimentos de alívio, alegria, gratidão e amor.

Ele e alguns dos seus amigos gostavam de gravar poemas, canções e discursos inflamados, em seus encontros regados a vinhos, doces e muito bom humor. Também tinha registros do seu pai cantando, orando e abençoando filhos e netos. E de sua mãe, cuja voz tinha um timbre particularmente belo, entoando os hinos das missas. Mais tarde ele digitalizou essas gravações compondo um acervo cuja audição sempre provoca lágrimas emocionadas.

Ecos no fluxo do tempo

Certa vez encontrou muitas fitas de uma secretária eletrônica que tivera. Adquiriu um equipamento onde podia ouvi-las e teve muitas surpresas agradáveis. Ali estavam guardadas diversas mensagens que ele não ouvira antes. Ficou sensibilizado com as vozes que surgiam dos tuneis do tempo. Elas o saudavam, o congratulavam, faziam piadas, sugeriam encontros, expressavam saudades e até mesmo cantarolavam canções cômicas, cheias de risos. Ouviu vozes de pessoas que então já habitavam dimensões sutis, trazidas à vida pela engenhosidade humana.

Sussurros como apelos de reconexão

Sua relação com essa transição inicialmente se manifestava com intensa dor e sofrimento. Como um ritual de lamentação pelas vidas ceifadas, principalmente se fossem jovens. Todavia, com o tempo, pensava nelas como se estivessem apenas distantes, sabendo que tão somente um tênue véu os separava. Em vários momentos onde algum estímulo as trazia à sua consciência, sentia suas presenças de forma bem acentuada. Como uma brisa gelada, sincrônica a estalos ou sons de passos. Ouvia o eco de suas vozes vindos como de uma gruta. Falava com elas, expressava sua apreciação. Ou, em alguns casos, as convidava a se retirarem, as vezes forçando-as, com repicar de sinos ou incenso.

Vínculos espirituais angelicais

Mas tarde, com a ausência de alguns de seus melhores amigos, a quem acompanhou cotidianamente no caminho de despedida, Leo compreendeu que, para algumas almas sensíveis a vida neste plano parece um suplício. A sua delicadeza as assemelha a anjos a quem o peso dos traumas e os antagonismos e desafios, as levam a atrair acontecimentos, situações e enfermidades como portas para voltarem ao lar. Ele os leva em sua memória e em seu coração onde os momentos dourados que compartilharam são joias de inestimável valor.

Uma trilha de sussurros atemporais

Ao contemplar o entrelaçamento de suas memórias, ele sente uma profunda gratidão pelos amigos que, mesmo não estando fisicamente presentes, continuam a iluminar seu caminho. Cada conselho dado e recebido, cada sorriso partilhado e cada momento de gentileza e alegria vividos juntos, estão gravados em seu coração com uma nitidez sublime. Sua fé o fortalecia e suas orações são um elo eterno, uma ponte que transcende o tempo e o espaço, mantendo vivas as almas daqueles que ama.

O eterno retorno

Leo sabe que a vida é uma miragem, uma dança efêmera sob o véu da ilusão. Mas também reconhece a beleza e a profundidade dos laços que a forjaram, que resistem às barreiras do tempo. Ao caminhar, sente-se guiado pelas mensagens do universo, decifrando os sinais que o levam a trilhar caminhos de maior felicidade. Com o coração repleto de serenidade e amor, ele segue em frente, consciente da transitoriedade da existência e agradecido pela eterna conexão com seus entes queridos. Cada passo, cada respiração, é uma celebração da vida e das infinitas oportunidades de crescer e evoluir.

Curitiba, 12 de novembro de 2024

Manoel Queiroz

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